Narrativas históricas
e as deportações iminentes na República Dominicana
Em Milot, vilarejo ao
norte do Haiti, a cada dia aumenta a incerteza quanto ao futuro de
familiares que cruzaram a fronteira para a República Dominicana.
Muitos esperam a chegada massiva de pessoas que serão alvo de
expulsão, nomeado pelo eufemismo de “repatriação” do lado
dominicano, e outros tantos confiam na possibilidade de que seus
parentes consigam escapar da polícia. A lei 168-14, votada pelo
Tribunal Constitucional Dominicano, em setembro de 2013, jogou
retroativamente milhares de haitianos(as) e dominicanos(as) de origem
haitiana em um verdadeiro limbo jurídico. No dia 17 desse mês,
chegou ao fim o duvidoso
Plano de Regularização de Estrangeiros, e milhares de pessoas
nascidas a partir de 1929, julgados como pessoas "em trânsito", perderam sua cidadania por não terem
conseguido comprovar a residência
de um de seus pais.
Para isso, o Estado e
parte da opinião pública da República Dominicana encontram
justificativa na (re)produção
de uma narrativa histórica de argumentos simplistas, isolados e
distorcidos que ganha ares de consenso na mídia dominicana e
encontra ecos em jornais estrangeiros: os conflitos e o ódio racial
entre as duas nações deita raízes no início do século XIX,
precisamente em 1822. Nesse ano, o Haiti, já uma nação livre e
independente, fruto das guerras anti-coloniais e de um projeto
abolicionista efetivamente universal, estendeu sua jurisdição ao
lado dominicano - ainda uma colônia espanhola - unificando a ilha e
decretando o fim da escravidão em todo o seu território. O
movimento nesse caso é feito por meio do silenciamento de fatos como
a participação efetiva e o apoio de vilarejos e de grupos
dominicanos à unificação. A esse conjunto de esquecimentos
seletivos e oportunistas soma-se ainda a importante participação do
Haiti na guerra pela segunda independência da República Dominicana,
em 1865, por meio do auxílio às tropas revolucionárias que
buscavam suprimentos e munição do lado haitiano e na participação
efetiva de colaboradores haitiano-dominicanos no conflito.
Revisões sobre tais
episódios foram levadas a cabo por intelectuais-políticos como Juan
Bosch, cujo projeto político foi solapado por um golpe de estado de
um outro político também afeito à produção de narrativas
históricas, o ditador Rafael Trujillo. A partir de 1930, Trujillo
iniciou um projeto de “dominicanização da fronteira”,
destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e
liberdades. Seu projeto político ganhou ainda um viés ideológico
centrado, sobretudo, na consolidação do “anti-haitianismo”,
política identitária baseada na produção de essencialismos e
preconceitos frente à população vizinha, tendo como um dos seus
mais marcantes resultados o sangrento
massacre de 1937. A simbólica data de 1929 parece ter sido
cuidadosamente escolhida pelos juristas que votaram a lei 168-14,
desrespeitando a memória desse evento e tentando, sem sucesso,
desvincularem-se do fantasma do ditador.
Nesse jogo de produção
de narrativas deturpadas e de aplicação de políticas
discriminatórias, muitos residentes da República Dominicana
começaram
a sofrer as consequências dessa lei, aprovada em maio de 2014,
expostos(as) a ameaças de expulsão, a abusos e à perda de
direitos. Na reprodução de uma imagem de um imigrante perigoso, "em trânsito" e
atavicamente atrelado a fatos históricos equivocados, tira-se do
campo de visão (e do próprio domínio da razão) a quantidade de
riquezas
geradas pelo trabalho de haitianos e haitianas nos campos de
arroz e de cana-de-açúcar e na construção civil por todo o país.
Se voltarmos ao vilarejo de Milot, o auxílio que familiares vivendo fora do país enviam por meio de remessas garante uma maior diversidade de fontes de renda e a possibilidade de dar conta de instabilidades ecológicas, garantindo recursos para o plantio e a colheita. Recursos muitas vezes mais efetivos do que os planos e projetos de ONGs na região. Se pensarmos ainda no cenário da capital, Porto-Príncipe, devastada pelo terremoto de janeiro 2012, as remessas garantem a continuidade dos esforços de reconstrução de modo mais eficaz do que qualquer outro organismo que tenta gerenciar do alto os enormes fluxos da ajuda internacional.
Na definição das
políticas de “lei
e de ordem” na República Dominicana, narrativas sobre o
passado e a escrita da história tornam-se objeto de disputa pública
com atores em posições marcadamente desiguais. Se o passado poderia
ser a matéria de um futuro imaginado como um lugar de grandes
esperanças, como o é para tantos que migram "buscando a vida", ao invés disso, incertezas se multiplicam em meio a
violências que ganham a chancela e a mão pesada do Estado.
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- MUDHA
Rodrigo Charafeddine Bulamah, de Rondonópolis para o mundo, mestre e doutorando em antropologia pela UNICAMP, atualmente realiza trabalho de campo no Haiti.
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