sexta-feira, 26 de junho de 2015

Coluna do Leitor - Deportações e usos da História

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários



Narrativas históricas e as deportações iminentes na República Dominicana


Em Milot, vilarejo ao norte do Haiti, a cada dia aumenta a incerteza quanto ao futuro de familiares que cruzaram a fronteira para a República Dominicana. Muitos esperam a chegada massiva de pessoas que serão alvo de expulsão, nomeado pelo eufemismo de “repatriação” do lado dominicano, e outros tantos confiam na possibilidade de que seus parentes consigam escapar da polícia. A lei 168-14, votada pelo Tribunal Constitucional Dominicano, em setembro de 2013, jogou retroativamente milhares de haitianos(as) e dominicanos(as) de origem haitiana em um verdadeiro limbo jurídico. No dia 17 desse mês, chegou ao fim o duvidoso Plano de Regularização de Estrangeiros, e milhares de pessoas nascidas a partir de 1929, julgados como pessoas "em trânsito", perderam sua cidadania por não terem conseguido comprovar a residência de um de seus pais.

Para isso, o Estado e parte da opinião pública da República Dominicana encontram justificativa na (re)produção de uma narrativa histórica de argumentos simplistas, isolados e distorcidos que ganha ares de consenso na mídia dominicana e encontra ecos em jornais estrangeiros: os conflitos e o ódio racial entre as duas nações deita raízes no início do século XIX, precisamente em 1822. Nesse ano, o Haiti, já uma nação livre e independente, fruto das guerras anti-coloniais e de um projeto abolicionista efetivamente universal, estendeu sua jurisdição ao lado dominicano - ainda uma colônia espanhola - unificando a ilha e decretando o fim da escravidão em todo o seu território. O movimento nesse caso é feito por meio do silenciamento de fatos como a participação efetiva e o apoio de vilarejos e de grupos dominicanos à unificação. A esse conjunto de esquecimentos seletivos e oportunistas soma-se ainda a importante participação do Haiti na guerra pela segunda independência da República Dominicana, em 1865, por meio do auxílio às tropas revolucionárias que buscavam suprimentos e munição do lado haitiano e na participação efetiva de colaboradores haitiano-dominicanos no conflito.

Revisões sobre tais episódios foram levadas a cabo por intelectuais-políticos como Juan Bosch, cujo projeto político foi solapado por um golpe de estado de um outro político também afeito à produção de narrativas históricas, o ditador Rafael Trujillo. A partir de 1930, Trujillo iniciou um projeto de “dominicanização da fronteira”, destruindo um rico universo social marcado por trocas, trânsitos e liberdades. Seu projeto político ganhou ainda um viés ideológico centrado, sobretudo, na consolidação do “anti-haitianismo”, política identitária baseada na produção de essencialismos e preconceitos frente à população vizinha, tendo como um dos seus mais marcantes resultados o sangrento massacre de 1937. A simbólica data de 1929 parece ter sido cuidadosamente escolhida pelos juristas que votaram a lei 168-14, desrespeitando a memória desse evento e tentando, sem sucesso, desvincularem-se do fantasma do ditador.

Nesse jogo de produção de narrativas deturpadas e de aplicação de políticas discriminatórias, muitos residentes da República Dominicana começaram a sofrer as consequências dessa lei, aprovada em maio de 2014, expostos(as) a ameaças de expulsão, a abusos e à perda de direitos. Na reprodução de uma imagem de um imigrante perigoso, "em trânsito" e atavicamente atrelado a fatos históricos equivocados, tira-se do campo de visão (e do próprio domínio da razão) a quantidade de riquezas geradas pelo trabalho de haitianos e haitianas nos campos de arroz e de cana-de-açúcar e na construção civil por todo o país.

Se voltarmos ao vilarejo de Milot, o auxílio que familiares vivendo fora do país enviam por meio de remessas garante uma maior diversidade de fontes de renda e a possibilidade de dar conta de instabilidades ecológicas, garantindo recursos para o plantio e a colheita. Recursos muitas vezes mais efetivos do que os planos e projetos de ONGs na região. Se pensarmos ainda no cenário da capital, Porto-Príncipe, devastada pelo terremoto de janeiro 2012, as remessas garantem a continuidade dos esforços de reconstrução de modo mais eficaz do que qualquer outro organismo que tenta gerenciar do alto os enormes fluxos da ajuda internacional.

Na definição das políticas de “lei e de ordem” na República Dominicana, narrativas sobre o passado e a escrita da história tornam-se objeto de disputa pública com atores em posições marcadamente desiguais. Se o passado poderia ser a matéria de um futuro imaginado como um lugar de grandes esperanças, como o é para tantos que migram "buscando a vida", ao invés disso, incertezas se multiplicam em meio a violências que ganham a chancela e a mão pesada do Estado.

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Algumas organizações na República Dominicana que lutam por direitos civis:




Rodrigo Charafeddine Bulamah, de Rondonópolis para o mundo, mestre e doutorando em antropologia pela UNICAMP, atualmente realiza trabalho de campo no Haiti.

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