quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Sob o Signo da Precariedade

. . Por Fernando Mekaru, com 4 comentários

Em tempos de crises políticas em Londres, Chile, Espanha e muitos outros locais, o adjetivo "orwelliano" é evocado para dar força ao comentário político: nas situações de exceção que se colocam, os governos acabam por tomar ações totalitárias e antidemocráticas que, invariavelmente, carregam o ranço das distopias totalitárias criadas por Eric Blair (o nome verdadeiro de Orwell) em obras como "1984" e "A Revolução dos Bichos", nas quais o controle sobre os indivíduos em nome da manutenção e perpetuação do sistema em que todos se encontram é levada às últimas consequências. A atualidade de Orwell, nesse sentido, é assustadora: diagnósticos feitos pelo escritor há mais de 50 anos continuam atuais e cheios de vigor, conseguindo explicar a nossa realidade tão bem quanto explicavam a realidade de Orwell na primeira metade do século passado.



O problema é que a fama e a presença de "1984" e "A Revolução dos Bichos" acabou por eclipsar o autor de maneira terrivelmente grande: o vínculo entre Orwell e totalitarismo é praticamente automático, e muitas vezes isso acaba deixando à sombra trabalhos dele que são igualmente brilhantes e possuem tanta atualidade e relevância para os dias de hoje quanto os dois pesos-pesados que são responsáveis pela maior parte da procura pelo autor atualmente.

Dentre esses livros, Na Pior em Paris e Londres é, talvez, o que receba menos atenção de todos. O primeiro livro publicado de Orwell e um dos três de sua produção literária que não cai no ofício pelo qual ele é mais conhecido - ficções que gritam muito sobre incongruências e monstruosidades bem reais que as pessoas não gostam muito de olhar - é uma autobiografia romanceada, que conta as desventuras de um jovem Eric Blair nas duas capitais européias acima citadas.



A primeira metade do livro passa-se em Paris, e dedica-se a contar como Orwell, após ter praticamente todo seu dinheiro roubado por um dos moradores do albergue em que residia, sobrevive a cada dia com quantidades vergonhosamente pequenas de dinheiro (e dignidade) após ser jogado na pobreza. A fome, a sujeira e a decadência são companheiras constantes do jovem inglês que roda o submundo francês e tenta tirar seu sustento das mais variadas maneiras possíveis, até encontrar um emprego como plongeur (lava-pratos) no restaurante do Hotel X, um local de renome de Paris. Uma fonte de renda fixa e a garantia de uma refeição decente por dia transformam-se no grande sonho do jovem inglês naquele momento. Mais tarde, Orwell acaba sendo empregado em um outro restaurante chique de um amigo, em uma posição semelhante a de lava-pratos: de qualquer maneira, uma fonte de renda estava assegurada e ele não é mais obrigado a viver do dinheiro advindo de roupas pessoais penhoradas, o que foi uma grande mudança no seu estilo de vida.

É quando Orwell sai das ruas e deixa de ser um indigente, passando a fazer parte da classe D parisiense, que um dos lados menos conhecidos dele surge: a crítica social potente, que não se aplica apenas ao totalitarismo e faz com que elementos da sociedade entrem em questionamento.

A riqueza e luxo do Hotel X e do restaurante são somente aparências, apesar dos preços altíssimos sugerirem o contrário: por trás das portas em que somente funcionários entram, a sujeira e a desordem imperam, em claro contraste à assepsia e ordem imponente do hotel e do restaurante. Esta impressão de luxo é mantida pelos plongeurs e outros trabalhadores menores do restaurante e do hotel, que levam uma vida praticamente escravizada com salários de fome para assegurar que todos os pequenos luxos, como poder jantar às três da manhã, tomar café-da-manhã na cama ou o ambiente impecável e acolhedor, possam acontecer para todos os clientes desses estabelecimentos. O tempo livre disponível nesse tipo de rotina é tão pequeno que o trabalhador não tem tempo nem de se indignar com a situação na qual se encontra: o próprio Orwell diz que sua vida, nesse momento, resume-se a trabalhar feito um escravo, dormir, começar a beber no sábado de manhã e parar somente domingo de madrugada, para então descansar e poder voltar ao ponto inicial.

A crítica do autor à estrutura que permite e incentiva que exista um "mercado do luxo" ao mostrar os prejuízos humanos que são necessários para que ele seja viável é feita de maneira crua, sem meias palavras: em resumo, uma camada inteira da sociedade é relegada a um estilo de vida simplesmente desumano para que uma série de serviços que no máximo possam ser descritos como extravagâncias possa ser oferecida a uma camada social privilegiada e restrita. Não é um diagnóstico leve, e ele é válido até hoje para uma série de atividades e serviços cuja finalidade é igualmente questionável.

Orwell poderia parar por aí, tendo já elaborado uma potente crítica contra a desigualdade na sociedade contemporânea, mas o livro continua.



Na segunda parte, após receber a oferta de um trabalho melhor em Londres através de um amigo, o autor deixa a capital francesa. Porém, chegando em Londres sem um tostão no bolso, ele descobre que deverá aguardar a família para quem trabalharia voltar de uma viagem para conseguir o referido emprego. Completamente destituído de todos os seus fundos após atravessar o canal da Mancha, Orwell volta à situação de pobreza extrema que conhecera na França, mas com um agravante: ele não encontra um subemprego que garanta uma ilusão mínima de dignidade material à sua vida, e mergulha de maneira inescapável na mais miserável mendicância enquanto espera os seus futuros empregadores voltarem.

Se a vida parece ruim enquanto parte da grande massa dos semiescravos parisienses, o autor faz questão de mostrar que a vida de mendicância nas ruas londrinas simplesmente não possui caráter de redenção algum: graças ao pouco gentil inverno inglês, Orwell é obrigado a dormir em abrigos e albergues de mendigos, mas é obrigado a andar muitos quilômetros em busca de novos abrigos a cada noite graças a uma lei inglesa que prende aqueles que se hospedam no mesmo albergue mais de uma vez por mês. Além disso, há o problema dos albergues abrirem somente em horário predeterminado, o que faz com que a massa de pedintes e destituídos simplesmente não tenha outra opção a não ser esperar, da maneira que for possível, para que possam se abrigar.

Perdendo quase todo os seus dias entre esperas para os abrigos abrirem, caminhadas longas e extenuantes em busca do próximo albergue e do próximo resquício de alimentação e dinheiro que pode encontrar, com o desgosto dos cidadãos menos miseráveis e a violência policial aparecendo como eventuais temperos para o tédio da vida mendiga, Orwell acaba conhecendo praticamente um sem-número de outros mendigos, todos eles representando um lado extremamente cruel e desesperador da sociedade moderna: um exército humano de incontáveis pessoas, todas mantidas em um estado de extrema precariedade porque é muito menos custoso para as sociedades que eles se mantenham assim do que empreender um esforço hercúleo de tirá-los das ruas e reinseri-los na sociedade. Frente a esta situação, o autor não tem pudor nenhum em dizer que qualquer um nesta situação simplesmente não consegue sentir gratidão por qualquer coisa que receba daqueles que querem ajudá-lo, e que a falta de atividade desses homens é plenamente compreensível: quando a sua vida se resume a caminhar quilômetros a pé em busca do próximo abrigo, todas as suas últimas refeições foram pão com margarina e chá dados de graça nesses abrigos e ninguém parece minimamente interessado em retirá-lo dessa vida para sempre, dispõe-se de muita pouca energia para além do instinto de sobrevivência, e é difícil sentir qualquer tipo de identificação com aqueles que não estão nessa situação.

O que Orwell mostra em "Na Pior em Paris e Londres" não é aquilo que o tornou famoso, mas sim algo muito pior e muito mais próximo de nós do que disopias onde o indivíduo vale menos que o sistema: ele mostra que as sociedades bem reais em que que o homem contemporâneo vive só prosperam sob o signo da precariedade humana, já que se estabeleceu um sistema em que milhares de indivíduos valem pouco mais do que nada e ainda por cima são simplesmente ignorados ou esquecidos frente àquilo que sua miséria concede em termos de riqueza material e/ou social aos que não estão em situação humana precária.

Perto de uma realidade dessas, que ainda existe e não dá sinais de desaparecer nunca conforme a urbanização corre desenfreada pelo mundo, o Grande Irmão e o governo do porco Napoleão são pouca coisa: ao contrário daquilo que é descrito em "1984" e "Revolução dos Bichos", o inferno humano que Orwell descreveu é bem real, e fingimos que ele é uma ficção a todo momento para não ter de encarar a sua dolorosa existência.

4 palpites:

Caro Mekaru (rimou!), que bom que você saiu do ostracismo.

Está muito bem escrito e claramente foi repetidas vezes revisado rss...

Gostei muito dos dois primeiros e dos dois últimos parágrafos, entediei um pouco na descrição do livro, mas valeu a leitura!

Abraços bolivianos...

Fernando, você pode falar como escreve, e também escrever mais - não me canso de pedir.
Digo isso porque lendo o texto, parei, olhei pro tanto de coisa que tem nele e me lembrei da esposa do LF Verissimo dizendo que acompanha o que o marido escreve justamente pra saber o que ele pensa. Justamente, parece que LF Verissimo é um sujeito bem calado, até mesmo em casa, com a esposa, filhos e netos. Taí uma comparação que não me envergonho de fazer.
Fiquei muito curioso pra ler o livro. Muito mesmo. Podemos trocar, mesmo eu ainda não tendo lido o Homenaje a Cataluña, te passo este, e você me empresta esse aí, que acho que pode me ajudar a pensar melhor umas coisas minhas.
Uma coisa que me surpreendeu bastante na tua escrita, não tinha reparado antes, não sei se já aparecia, mas é a quantidade de advérbios e adjetivos para a caracterização do que você expõe. Engraçado, acho que justamente isso me fez imaginar que você escreveu como você não fala: você não foi nem um pouco econômico, não simplificou coisa alguma. Por isso, você foi, como é quando fala curiosamente, preciso, mas de outra forma, muito rico estilisticamente.
Parabéns!
Abração

Alguns tempo atrás experimentei ouvir um podiobook. Aconselho a todos essa interessante experiência. Entrei em um site com diversos desses "audio-livros" e escolhi um pelo autor que sabia ser um militante da cultura livre e tal. O livro se chamava "Down and Out in the Magic Kingdom". Nunca tinha entendido direito o pq desse nome. Acho q entendi um pouco melhor agora. http://www.podiobooks.com/title/down-and-out-in-the-magic-kingdom

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