domingo, 19 de agosto de 2012

O bicho do mato

. . Por Unknown, com 1 commentário


"Borboleta Azul
ao entrar na cachoeira,
me lembrou que a tristeza
é uma coisa passageira"
(Ouviu-se, um dia, em Amparo)  




O sujeito é um bicho do mato, mesmo tendo crescido na cidade, é Bicho do Mato. Não é taciturno, mas é caladão, não fala muito nem pouco, fala apenas na justes. Bicho do Mato não é antipático nem boa praça, é somente rabugento, tem um mau humor particular,  quase indescritível. É assim, Bicho do Mato. Ele sabe capinar, montar, fazer e refazer hortas, o cuidado dele com um quintal é difícil encontrar. Possui saberes que não estão nos livros, que não se transmitem, que não se guardam, que não se anotam ou se experimentam, ele somente sabe. Talvez ficasse mais bem dito que os saberes é que o possuem, mas há aí metafísica por demais, não combina com Bicho do Mato. Mesmo sem ter aprendido, ele sabe, e não é sabido como eu tento ser, sabe porque é sábio e assim o é.
A última vez que o vi, ele estava diante de um mapa. Sempre querendo ser engraçado, ou pior, acreditando ser, mandei um “que que é Bicho do Mato?, tá pensando em viajar, é?, você já vive viajando!”; “Ó que eu vou hein, rapai! Duro é que é longe... duro vai ser pra muié e pros fio...”. Sim, ele fala com uma simplicidade que dói às vezes. Dói de bonito, nada de sentimento culpa, não. Bicho do Mato conversa como procede, na simplicidade. Simplicidade tão cândida que nenhum João, Antônio ou José lhe cabe.
Bicho do Mato não tem pelos, apesar de seu pai ser árabe, um tipo daqueles bem típico, barbudão, o menino é que saiu praticamente imberbe, nem bigode ele tem. Quando o conheci, Bicho do Mato já passara dos vinte, denunciava a idade maior frente à adolescência dos meus dezessete passados. A idade deve fazer as pessoas ocupadas, porque da primeira à última vez que o encontrei, ele sempre teve muitas coisas a fazer. Era o tempo da faculdade ainda, saíamos mais cedo das aulas, entortávamos o estágio, relaxávamos no emprego mequetrefe anos depois, não importava, Bicho do Mato saía mais cedo do futebol, da cerveja com o pessoal, não esperava a festa, tampouco o samba acabar, dizia sempre ter muito a resolver no dia seguinte. Misterioso é esse meu amigo, quantas vezes estive em sua casa, ou ele na minha, mas o rapaz desperta apenas para estar desperto, eu acreditava. Preconceito meu, claro, afinal, há muito por fazer quando se precisa afinar instrumentos musicais. E Bicho do Mato é músico virtuoso, mestre sem diploma nessa arte. Na cidadezinha onde cresceu, muitas e muitas vezes ele nos contou, fez sucesso com um grupo de pagode.
Se o leitor subestima o gênero, o visual de Bicho do Mato a maior parte desses anos mostra outra de suas faces, pois a coreografia pode ser inspirada no Katinguelê, mas a cabeleira faria inveja ao Robert Plant. Parece impossível conjugar tudo isso, não para Bicho do Mato. Coerência nunca foi seu ponto forte, tantas foram as guitarras, pandeiros, bandolins, cavaquinhos, baquetas e violões que cultivou nesses anos todos. Ah, aquela velha sanfona dos últimos tempos. Muitas vezes, eram instrumentos artesanais caríssimos que, no entanto, da noite para o dia desapareciam, davam lugar a uma bola de Pilates. Exatamente, certa feita Bicho do Mato trocou um violão por uma bola daquelas usadas na prática de Pilates. Queria se exercitar em casa, dizia ele. Apenas Bicho do Mato poderia explicar a equivalência que encontrou entre o violão e a bola. Mas depois descobri que a bola, enfim, deu lugar a um cavaquinho, e Bicho do Mato passou foi por esperto no fim das contas.
Nós, os amigos, nunca deixamos por menos, qualquer coisa dele era motivo de piada. Todavia, para algumas coisas Bicho do Mato não admite brincadeiras. Quando o assunto é música, especialmente, dar risada quando alguém pede Raul Seixas em mesa de botequim é uma coisa, agora trocar a imagem do velho roqueiro que Bicho do Mato leva tatuada no braço pelo Seu Madruga é de o deixar indignado.
A simplicidade também contrasta com a agitação que o rapaz apresenta dia a dia. Quantas vezes não se ouve das pessoas que, de o conhecer rapidamente, dizem ser ele um sujeito tranquilo? Ledo engano. Isso está expresso na forma em que come: pouco, é verdade, mas tantas, muitas e repetidas vezes durante o dia. O arroz com feijão do almoço não é muito, somente proporcional às frutas ou aos pãezinhos que o antecedem ou o esperam em meia-hora.
Acredito que coma bastante pois precise de muita energia. Bicho do Mato é um atleta, só assim para correr tanto. No futebol o avisamos, em tom de galhofa, para que não esqueça a bola, que a pelota é que precisa entrar no gol antes dele. Tem muita sorte, disso eu o invejo, ainda que lhe falte habilidade, ele resiste pela esperteza dos passos rápidos no gramado.
Sorte e alheamento, às vezes, que mistério aquele rapaz. Passou anos com esse jeito calado, como quem está decidida e resignadamente apaixonado sabendo não ser correspondido. Mesmo tendo um coração enorme, só se via Bicho do Mato acompanhado de suas bicicletas. E foram muitas, mais até que os instrumentos musicais. Acho que guardou, por timidez, a expressão de seus sentimentos à pessoa certa que lhe quisesse. Até hoje resiste à cerimônias quaisquer, mas acho que só mesmo a patroazinha que ele encontrou – de novo, talvez fosse melhor dizer o inverso, que foi ela quem o encontrou – para deixar Bicho do Mato feliz de amor.
Antes da patroazinha, uma vez lhe perguntaram se de mulher ele gostava. "Gosto sim, cara", foi a resposta tranquila, como que não entendendo a curiosidade. A comparação que se seguiu, confesso, nunca entendi, porque Bicho do Mato disse exultante, com muito mais ímpeto, que de Maria Joana ele gostava bastante. Não conheci a moça, só ouvia o pessoal comentar que ela passava de mão em mão nas rodinhas das festas. Bicho do Mato ficou de me apresentá-la um dia, parecia que ela realmente fazia a cabeça dele. Combinamos de nos encontrar, eu ia contente por enfim conhecer a moça do coração de Bicho do Mato, mas ele ficou lá no quintal proseando comigo, eu sentado com minha cervejinha enquanto ele separava uns matinhos, preparava seus cigarros, sorria, sorria muito aquele dia, gargalhava à toa, à toa. Maria Joana eu não vi. A patroazinha, contudo, é muito minha amiga.
Mas falo no presente quando, na verdade, o tempo hoje é pretérito. Não, ele não se foi falecido, ou algo assim – o que seria equivalente a desviver? –, não, ele não morreu, basta: ele apenas se mudou. Eu falava do mapa, ele viajou, pois, juntou as tralhas, digo, os instrumentos musicais, as bicicletas, e rumou para o oeste. Há uma controvérsia sem fim sobre isso, inclusive, uns dizem que foi a patroazinha quem lhe deu direção na vida. Outros dizem que não, que foi o bom trabalho que arranjou praquelas bandas, o destino, a vida foi quem lhe guiou. De todo modo, os fio já estão com ele. O casal de vira latas mais simpático que estas terras já viram foi embora. Ah, sim, na contenda sobre a partida, dizem ainda que foi o pulguento macho que levou Bicho do Mato. Sei não, desconfio.





*contribuíram com o texto acima  os Thiagos Aoki e Fernandes Franco, o "Peixe"

1 palpites:

Lindo texto, Hugão. Segurei o choro para não ter que dar explicações, mas apertou a saudade. Bicho do Mato é um tipo vira-lata, que chama seu amor de "nêga" e nunca sorri por convenção. E ainda assim sorri. Aprendi muita coisa só de observá-lo, a maior parte mesmo sem entender direito.

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