segunda-feira, 2 de abril de 2012

Cartas - O país mais caro do Brasil

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários

Arthur,

Que saudade, carinha. Uma pena que não nos encontramos no começo deste ano, mas, ao mesmo tempo, agora vejo que talvez tenha sido melhor assim, pois, quando você voltar, espero que tenhamos mais a conversar sorrindo que se lamentar, no meu caso. Calma, digo isso mais para fazer um belo e mesquinho drama do que de fato para apontar qualquer catástrofe. Minha mudança para o país mais caro do Brasil acabou atrapalhada, pra variar, cheia de emoção - risos. Dizem que a cidade de São Paulo não dorme, e acho perfeitamente possível viver de insônia - me perdoe o trocadilho infame -, mas custava ficar quietinha cinco minutos por dia?! Pode até não dormir, é só fazer silêncio um pouquinho que seja! Néca. Me mudei para a Rua da Consolação no começo de janeiro. Não importava a hora em que fosse me deitar, tampouco aquela em que me levantava, a sensação de ter uma construção, uma obra, uma reforma, uma verdadeira sinfonia de britadeiras, buzinas e quebra-quebra não me abandonava. Coisas de um jeca na capitar, eu sei, mas enfim, passou, não estou mais lá.

Tive que me mudar. Por sorte, ou não, um dos meninos que morava ali comigo, um dia me disse que, com a renovação do contrato do apê, precisávamos ir à imobiliária, há menos de uma quadra, e incluir nossos nomes, de um outro menino e o meu, no contrato. Cheirava mal a história, digo isso agora, é verdade. Ele havia me falado em dezembro do reajuste no aluguel que, até aí, é normal, acontece todo ano. Mas trocar os nomes numa renovação de contrato, diria vovó, cheirava a chifre queimado. Não me pergunte como é esse cheiro, não sei, mas que cheirou, cheirou depois.

A senhora que nos atendeu, não se levantou da cadeira para cumprimentar os três marmanjos que chegaram, mal acenou com a cabeça um "olá". Ela parecia estar há séculos atrás daquela mesa fumando e tomando cafés, deixando escapar gotas de saliva entre uma palavra e outra, cheia de olheiras. Por alguns instantes, pensei que nunca mais fosse conseguir colocar uma xícara de café na boca novamente. Atrás daquela mesa, ela parecia também controlar tudo que a mantinha viva, resignando-se ao computador, a uma linha telefônica e à cadeira móvel e giratória. Já o café e as bolachinhas da pequena mesa justaposta ao lado chegavam através de uma ordem qualquer, imagino. Se fosse exagerar mais, bancando o blasé de vez, diria que ela parecia ter saído de uma novela do Kafka, mas talvez seja mais parecida com um daqueles personagens de "O Guia do Mochileiro das Galáxias", o filme. Raivosa, mal educada, grosseira, estúpida, ela basicamente não nos ouviu, foi falando, dizendo que o Mercado – eu só conseguia imaginar um senhor distinto, garboso – mostrava como estavam as coisas, que poderíamos conferir com o Mercado como estavam os imóveis na região e na cidade, afinal, o novo contrato com um "reajuste" de 100% no valor do aluguel não era absurdo. Oi?!

Falei de Kafka, ou d'O Guia do Mochileiro das Galáxias, não. Faz muito tempo, li aquele "Memórias do Subsolo", do Dostoiévski – dizem, ele gostava de flamingos –, o narrador-personagem daquela história sim me parecia a mulher da imobiliária. Já nos primeiros parágrafos vemos isso: “Faz muito tempo que vivo assim – uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. (…) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. (…)”. Se não conhece esse livro, Cão, não estrago mais nada, porque é uma leitura... marcante... vale a desestabilização em que nos deixa.

Depois daquela senhora se negar a nos passar o contato do proprietário, o que é normal, já que uma imobiliária faz a intermediação, né, conseguimos falar com o sujeito e ele ficou de falar com ela, vendo uma nova proposta. Nada aconteceu e, no fim, depois de uns dez dias, ele pediu o apartamento pelo telefone, conversando comigo. Paciência. A voz dele era muito agradável, me parecia um vovô tão gente boa, tão dahora, que desliguei o telefone sorrindo. Foi um amor, só gentileza. Sério, eu me queixava da má educação da mulher, dizendo que por isso entrávamos em contato com ele, e, com toda calma do mundo, ele, “por favor, Sr. Hugo, não se importe com isso, essas coisas são pequenas demais, a verdade é que eu quero o apartamento, quero reformá-lo e, quem sabe, me mudar pra essa região”. A verdade é que eu nem quero saber a verdade depois disso, porque ser tratado educadamente faz diferença...

Mas reparei, outro dia, que algo me ficou marcado daquele apartamento, além dessas coisas chatas. Gostava da visão que dele se podia ter. Na sala e na cozinha, as janelas miravam a Rua da Consolação em sua parte mais baixa. Era possível ver um canto da parte superior, talvez a torre, da Igreja que dá nome à rua, e também os edifícios Itália e um pedaço do Copan, entre tantas outras construções. A fragmentação, a distância e mesmo as cores, verdes perdidos, compunham uma paisagem muito bonita. Naquelas semanas que fiquei ali, choveu demais, quase todos os dias, e, de alguma forma, era divertido encostar na janela da sala tentando adivinhar o que se fazia no prédio vizinho, atrás dos vidros negros do Tribunal Regional do Trabalho, e então assistir à formação das nuvens, o escurecimento do céu e mesmo o desaparecimento dos edifícios numa tempestade. Da cozinha, ainda, ficava a imagem, um quadro, um mural bem grande na lateral de um colégio, em que um padre, de pé, mostrava a duas crianças indígenas a palavra dita sagrada. Durante os primeiros dias eu até quis pensar alguma traquinagem com aquele mural, falo de puro vandalismo mesmo, porém, junto à falta de criatividade, batia o medo de ser identificado e pego, a vergonha por não respeitar a crença que a imagem de alguma forma representa, e, claro, uma preguiça enorme.

Bom, no mais, por aqui acho que as coisas mais relevantes foram a ação conjunta dos governos municipal e estadual, via polícia militar, no centro da cidade, lá na “Cracolândia”. Um horror. Sem contar que dias depois veio o desfecho(?) do Pinheirinho, em São José dos Campos. Um horror enorme. Dia desses mais uma morte besta de uma ciclista aqui perto, na Paulista. Não há ciclovia nesta que é a avenida economicamente mais importante da cidade, acho que do país. Oi?! Foi assustador pra mim, cruzando aquele lugar quase todos os dias. Mas não sei o que é mais assustador, se nos colocarmos no lugar daquela moça, ou se assistir à indiferença e inércia que se segue depois disso, para a Cracolândia, para o Pinheirinho, para a maluquice da vida que se leva por aqui, ao redor... Nacionalmente, o assunto parece que é a Copa, se se vende bebida alcoólica ou não. Esquecemos Belo Monte, o novo código florestal...

[Poxa, quanto lamento...] Devo confessar, Cão, mesmo já tendo me mudado muitas vezes, dividido casas, repúblicas e apês com pessoas muito diferentes e em lugares também diversificados, nunca uma adaptação pra mim foi tão complicada. São Paulo é excessiva. É a única forma que encontro pra falar algo em poucas palavras.

E quem tem batido um bolão é o Romário, na Câmara. O teu Palmeiras, quem diria, era líder no Paulista, ensacou o meu querido Botinha em Ribeirão um tempo atrás - doeu, viu (risos) -, mas vacilou, perdeu pro Curínthia e ficou pra trás.

Ah, vi um filme mês passado que me lembrou de você por vários motivos, "Les Noms des Gens". E, por favor, se puder, arranje um fim de semana qualquer e corra até Granada durante a primavera, visitar Alhambra e passear por aquela cidade nessa estação deve ser incrível!

Abração,
Hugo
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O que é isso?! Pra quê?! Por quê?!
Cansados de twitter, facebook, MSN, skype e e-mails, achamos - o verbo é esse mesmo, incerto - que seria legal copiar a ideia do blog do Instituto Moreira Salles, na seção correspondência. Ideia retrô?! "Poser"?! Fitinha?! Que só quer aparecer?! Ah, é claro, do contrário nem blog faríamos. E como espaço de conversa informal, muitas vezes, de ideias soltas, vagas, nada melhor do que se aproveitar do formato carta, correspondência, para falar com amigos distantes. Pretexto. Assim, também, paramos, pensamos em nossas vidas, no que está acontecendo ao nosso redor, e tentamos nos comunicar sem a velocidade, a urgência do instantâneo que uma mensagem via celular, uma chamada no skype, uma publicação no mural de uma rede social, ou mesmo um e-mail apressado fazem, mas apenas conectamos nossas vidas ao tempo delas mesmas, longe dos salões aristocráticos, das conversas programadas de corredor. Ou não, esperemos para ver até onde isso vai.

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