Nas linguagens artísticas, incontáveis obras têm como substrato o drama da existência humana. Peças de teatro, filmes, pinturas, músicas, romances, poesia. Ser artista, de algum modo é tentar responder (ou lidar com) questões que a objetividade deixa escapar ou simplesmente se mostra insuficiente. Na inspiração do artista, materializada em sua obra, há algo de metafísico, de indizível e incomensurável.
Por muito tempo, houve um apelo da classe artística pela profissionalização do seu trabalho, o que vem ocorrendo em alguns aspectos, com abertura de novos editais, expansão das produtoras culturais, surgimento de centros culturais, leis de incentivos etc.
Se por um lado essa vertente da profissionalização possibilitou que diversos artistas pudessem sair do ostracismo, entrar em um circuito de venda e sobreviver de arte, por outro há um confronto entre este aparato e a subjetividade do próprio artista.
Essa profissionalização a que me refiro, inserem os artistas na divisão de trabalho como prestadores de serviços, contratados para produzir/executar aquela obra. O que quero dizer com isso? Que apesar de ter uma profissão ligada às questões subjetivas, o artista é, objetivamente, um trabalhador. Assim, enquanto trabalhador, sofre um processo de alienação de seu próprio produto de trabalho e, durante sua prática, vivencia situações de conflito de classes e subjetividade. Ahn? Vou tentar exemplificar.
Um amigo baterista certa vez me disse que fazia tanto show que só lembrava e sentia que era músico quando reunia os amigos em casa para fazer um som e curtir uma música. Há também o caso de grupos que pautam o seu processo criativo a partir da demanda de mercado (editais, leis de fomentos, etc), perdendo boa parte de sua autonomia. Também não é tão raro que os contratantes, com essa visão reducionista, queiram interferir na obra do próprio artista, sem entender que aquilo é algo especial, proveniente da própria criatividade humana, basta ver o polêmico cancelamento da exposição de Nan Goldin. Por fim, temos produtoras que agem como imobiliárias e simplesmente vendem um produto para ter uma comissão sobre o lucro, mais justo, neste caso, aquelas que trabalham como arquitetas e ajudam a construir e entender o conceito do próprio grupo ou artista, fazendo a devida mediação entre contratante e contratado. Sem falar na tal economia criativa coopta elementos artísticos para agregar valor a determinados produtos ou marcas.
Nesta vertente da profissionalização que se afunila, a arte perde cada vez mais sua posição de protagonista no estranhamento crítico do mundo, transformando-se em um serviço qualquer. Logo mais, não duvide, pode ser que as curadorias (escolhas baseadas em critérios artístico-conceituais) sejam substituídas por licitações (escolhas baseadas em critérios objetivos – preço, tamanho, modelo, etc). Exagerando um pouco, as obras artísticas correm o risco de serem tratadas como vigas de madeira, tubos para encanamento ou tijolos em série.
Brinco que há tanto cerceamento da própria criatividade artística - perdida por entre editais, documentos autenticados, autorizações de órgãos responsáveis, entre tantas outras coisas que tomam a cabeça do artista-trabalhador – que pouco sobra para o metafísico da inspiração. Uma inversão de prioridades.
É óbvio que, por toda a história, a arte sempre lidou com as brechas e, por mais que se fale em "fim da canção", "fim do teatro", "fim da fotografia", e outros "fins", ela dará um jeito de se esquivar e procurar um copo de mar para navegar, eis a dimensão política da arte.
Porém, questões latentes como a regulamentação do artista de rua, a consolidação de uma legislação trabalhista específica, a inserção do campo artístico na educação, a re-conceitualização dos direitos autorais, entre outras, acabam sendo deixadas de lado, enquanto o que tem se chamado de profissionalização da arte, nada mais é do que sua plena transformação em mercadoria.
Conciliar as necessidades do estômago e da fantasia, será possível?
Espetáculo "Este lado para cima", com a Brava Companhia
Texto publicado originalmente na revista Casuística, que acaba de lançar sua nova edição.
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