VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Entre o amarelo e o vermelho

. . Por Unknown, com 0 comentários




O semáforo estava na luz amarela, eu vi que não daria pra atravessá-lo, ele ficou vermelho em seguida. Reduzi e, freando, antes de parar o carro, pelo espelho retrovisor do centro, ainda deu tempo de ver que quem vinha atrás de mim não reduzira, então retirei o pé do freio e, na fração seguinte, pow, percebi meu corpo distante do banco ao mesmo tempo que enlaçado pelo cinto de segurança. Minha cabeça fez um sim largo e instantâneo do encosto ao esterno. Eu estava certo. O carro de trás estava errado, o semáforo estava fechado, ele o atravessaria se eu não estivesse na sua frente. Como eu estava ali, ele me acertou, e porque ele me acertou, estava errado outra vez. O acidente – isso que é casualidade e simplesmente acontece – foi causado por ele. 


No playground da monótona existência, eu já ia pedir pra repetir o número do espetáculo e jogar os braços pra trás, queria sentir outra vez toda aquela emoção. Mas mudei de vida – torno pública a minha conversão – agora procuro evitar rompantes. Quer dizer, o mundo segue certinho, quem anda errado sou eu. Em todo caso, foi curioso perceber que o aparelho de som do carro não parou de tocar depois do impacto, mesmo tendo saltado do painel. Coloquei-o no lugar enquanto acompanhava a letra da conhecida música que se iniciava, o ritmo, porém, era outro, por isso preferi desliga-lo, para não me atrapalhar. Encostei o carro no movimento que a batida o fez percorrer  falando assim eu pareço um ninja, todo ligeiro –, e fiquei torcendo pra não ser um playboy, ou um psicopata o responsável pelo volante no carro de trás, afinal, bastava ele estar errado, maluco já era demais. 


Pelo mesmo espelho retrovisor, vi que eram três pessoas dentro daquele colorido e grande carro esporte, eu estava sozinho. Pelo menos, também, o vidro de trás do meu carro, que me permitiu vê-los, não tinha sinal algum de dano. Eu continuava certo. Desci tentando não olhar muito e abandonar a sensação de que meu porta malas estava colado ao meu banco. Não estava, meu carro modelo sedan mantinha até mesmo o tamanho de seu porta malas original. A frente do colorido e grande carro esporte, no entanto, estava muito danificada, como o meu para choque. Meu porta malas não, um pouco menos. O motorista, que estava errado, desceu: 

- Ô amiguinho!
- (...)
- Ô amiguinho, tá tudo bem aí, aconteceu alguma coisa com você?

- Não, cara, não aconteceu nada comigo, tá tudo bem. Tá tudo bem aí também, aconteceu alguma coisa com vocês? – descia a passageira dele, se dirigindo ao meu carro.
- Nossa, não bastasse fazer um estrago assim na frente, tinha que bater num carro desses que sequer amassou direito a traseira – imaginei que tipo de acidente eles esperavam causar sem danos a si próprios e, mais, que tipo de veículo estavam acostumados a acertar pelo mundo afora.
- A senhora tá com algum problema no braço? Quer que te leve no hospital, no pronto socorro?  ela revirava o braço fazendo uma expressão muito semelhante às primeiras palavras dela ao sair do carro.
- Não, não, amiguinho – me interrompeu o motorista enquanto eu insistia, me dirigindo também à moça no banco traseiro, que não descera – Não, a gente já vai indo. Aqui ó, meu cartão, me procura no salão ali, cinco quadras à frente, a gente acerta tudo direitinho depois, fica tranquilo, não aconteceu nada – só faltou ele dizer que estava tudo certo. 


No cartão dele havia o mesmo nome da concessionária que bordava seu uniforme. Em vez da delegacia, de um boletim de ocorrência, o cartão da concessionária os substituiu. Errei. No dia seguinte, fui ao endereço tão próximo do acidente. O motorista era mesmo funcionário e, quando do sucedido, ele havia acabado de vender um exemplar idêntico do colorido e grande carro esporte que guiava à mãe e filha que eram suas passageiras. Voltavam do pátio da revendedora, na saída da cidade. Ele conversava com a mulher, explicava-lhe o painel, falava à filha dela no banco de trás, a mãe tirara o cinto de segurança, pois estavam há poucos metros do destino. Ele virou-se para trás, não viu o sinal, quando percebeu, não teve o que fazer. Foi uma sucessão de erros, na verdade. Com a batida, a mulher foi jogada para baixo do painel e deslocara a clavícula. O carro não estava registrado no seguro da concessionária, então o acidente ficou por conta dele, funcionário, que preferia não ter um boletim de ocorrência em seu nome num veículo da empresa. 


Peguei outro cartão, o do funileiro que ele indicou, levei o meu carro lá. Depois de cinco dias, voltei e vi que o para choque havia sido reformado, pintado. O porta malas, aquele que não havia amassado tanto, conforme a passageira, pois é, estava do jeito que eu deixei lá. Perguntei o que havia acontecido, ouvi que o orçamento não havia sido totalmente liberado e me foi mostrada a frente do colorido e grande carro esporte como justificativa. Só consegui pensar nas palavras da mulher ao descer daquele carro. Eu não tinha um boletim de ocorrência e não poderia deixar mais nenhum dia o carro na funilaria. Peguei as chaves e ouvi a recomendação: vê se presta atenção agora, quando for parar no semáforo. Definitivamente, eu estava no lugar errado.




sábado, 23 de novembro de 2013

Ainda que as bolachas falassem

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários

Ontem Joaquim me disse:

"As bolachas não falam!"

Eu não estava convencido. Indaguei a ele o porquê. Como se fosse claro me respondeu, de pronto:

"Porque ela não tem boca!"

Ainda em dúvida perguntei a ele se tudo que tem boca fala. Contratacou-me dizendo que os passarinhos também não falam. Não deixei nem mais um minuto para a resposta e disse que os passarinhos falavam, mas em outra língua (até me arrisquei fazendo alguns assobios tentando imitar uma conversa de passarinho). Os olhos de Joaquim se perderam. Por alguns instantes. Depois continuamos a brincar. Papo encerrado. Dentro em pouco chegou sua mãe para levar Joaquim embora - viagem longa para casa durante uma tarde ensolarada e quente. Ao se despedir a única coisa que me disse fora:

"mas as bolachas não tem boca!"

De certa maneira uma nova brecha de sonhos e imaginações se abriu ali. Ainda hemos que fazer a bolacha falar. Uma coisa temos em comum acordo - os passáros falam!

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Ousemos tocar as Estrelas

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

"A mente intuitiva é uma bênção sagrada e a mente racional é um servo fiel. 
Criámos uma sociedade que honra o servo e que esqueceu a bênção"
(Albert Einstein)

Caros amigos,

A maior opressão que vivemos hoje é a prevalência da razão sobre os sonhos. Ô mundinho ruim pra se sonhar. Percebo isso cada vez que escuto expressões como “meu sonho é passar no mestrado”, “sonho com aquela promoção no meu emprego todo dia” ou “estamos realizando o sonho da casa própria”.

Vejam, tudo isso é muito, mas muito, muitíssimo importante na vida como a concebemos. Porém, meus amigos, sonho não tem matéria, sonho deveria ser o inatingível, a exceção, o fabuloso, o sublime... Não apenas mais um parafuso de uma peça da engrenagem dessa grande máquina.

Fico pensando há quanto tempo deixamos de ousar em nossos sonhos, de querer tocar as estrelas... Provavelmente lá pela segunda ou terceira série, quando nos disseram – como se isso fosse a mais pura verdade! – que ela seria apenas uma “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”. E caso duvidemos, lá estão, na retaguarda, wikipedias, earths, maps, tradutors, e outros tutores para nos explicar. Isso mesmo, em algum momento, as estrelas - companheiras dos poetas, guias dos marinheiros que se arriscavam pelo mar, confidentes de todos aqueles que algum dia sentiram-se sozinhos – transformaram-se em uma “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”.  Para mim qualquer teoria social ou filosófica deveria começar respondendo o porquê que em algum momento as estrelas se transformaram em uma mera “grande e luminosa esfera de plasma, mantida íntegra pela gravidade”.  

Mas fato é que estão matando nossas dúvidas, e isso é gravíssimo, pois um mundo sem dúvidas é um mundo chato, onde para tudo já se tem uma verdade, um jeito certo, uma história certa a ser contada, um caminho de mão única.

Por exemplo, não basta comer, é preciso lavar as mãos comsabonete líquido e álcool gel antes da refeição, cumprir uma Dieta de 2000kcal diárias, com 30 mastigações por vez antes de engolir. Ah, importante: dentadas espaçadase tranquilas com intervalos de 20 segundos. E água apenas após as refeições.

Até para limpar a bunda já inventaram a forma correta! Não, não é brincadeira, nem um exagero do desabafo deste que vos escreve. Aconteceu: racionalizaram o cocô. Se você duvida, veja o vídeo abaixo, vindo de nossa maior emissora televisiva.



Assustador, não é? Aliás, falando em vídeo, hoje mesmo pesquisei o termo “dieta” no youtube e encontrei 729.000 vídeos sobre o assunto. Quando pesquisei por “poesia”, foram localizados 403.000. Quase metade! Isso não é inconcebível para vocês? 

Mas o que mais me intriga é como uma sociedade com tanto jeito certo e medida certa pra tudo consegue ser tão doentia e paranoica? Como consegue ter a indústria farmacêutica como um dos setores mais rentáveis da economia e descobrir tantas novas bactérias e vírus?  Como tantas síndromes e tanta tarja preta?

Talvez simplesmente porque uma sociedade sem sonhos, ou com tantas limitações para rabiscá-lo, é uma sociedade doente. E não se enganem, legar ao trabalho e consumo a responsabilidade de alimentar nossa subjetividade só fará de nós seres mais patológicos.

Melhor deixar esse caminho para a arte, para as estrelas e para as demais brechas dessa engrenagem toda.

Ousemos tocar as Estrelas!

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Aquilo

. . Por Fernando Mekaru, com 4 comentários

Acho que estou com uma doença.

Ela se manifesta naquela pequena eternidade dos minutos em que é necessário ficar sozinho em meio à multidão, esperando por algo prosaico, mas relativamente importante, acontecer - filas de banco/supermercado/etc., o tempo de trajeto do metrô, o pedido chegar à mesa do restaurante, a espera no ponto de ônibus... São nesses momentos de calmaria/tédio cotidiano que aquilo aparece, colocado no mundo por algum objeto ou reflexão meio vazios de significado, mas que são a proverbial gota d'água num copo prestes a transbordar, ou que fecham o circuito necessário para a igualmente proverbial oficina do diabo começar a funcionar.

É difícil explicar o que vem a ser aquilo; o importante é que aquilo existe, e normalmente transforma uma platitude qualquer em um longo inferno de reflexões acerca da vida, cuja existência é injustificada no momento em que ele surge. Segue um exemplo recém colhido de uma ida ao supermercado para comprar queijo, escova de dentes, meio quilo de patinho moído, duas tangerinas e saquinhos para chá¹, ao chegar na fila do caixa:

"Pô, que louco, né. Agora tem mais um balcão só pra queijo aqui; se for contar, deve ter coisa na casa de quarenta ou mais queijos diferentes nesse balcão. Apesar disso, continuo escolhendo o mesmo queijo de sempre. Por que será que faço isso? Não é porque é o mais gostoso, pois não conheço o suficiente de queijo pra afirmar isso; nem é por causa do preço, pois tem alguns mais baratos que ele... Não é porque ele me contenta mais, senão nem questionaria o fato de existir tanto queijo no mundo e eu insistir no mesmo de sempre; por que diabos essa preferência ao certo ao invés de arriscar naquilo que pode ser duvidoso? Não sei se é legal isso... E se eu fizer isso com outras coisas da minha vida? Deuses, e se eu só tiver essa vida porque, lá no fundo, fui ensinado a não arriscar com o novo e não aprendi a enxergar e experimentar novas e melhores possibilidades para tudo? Por que escolho aquilo que escolho, e não escolho aquilo que não escolho? Aliás, será que realmente escolho algo nessa vida, ou todas as opções que aparecem a mim já estão com a resposta predeterminada, e é por isso que não tenho vontade de experimentar outros queijos?"

Parei com essa diatribe mental quando me dei conta que tinha saído de casa para comprar o que faltava para o almoço e períodos arredores, e estava voltando para ela com questionamentos sobre a natureza do livre arbítrio vindos da gôndola de queijo dum supermercado. Isso não podia ser coisa normal, que todos da fila estavam fazendo simultaneamente a mim.

[Mentira, parei porque a menina do caixa perguntou se eu queria CPF na nota e se eu era Cliente Mais.]

Aquilo me acontece já faz tempo, e às vezes tenho a impressão que posso me ferrar grandão se der muito ouvido a ele. Como, por exemplo, quando eu estava esperando o ônibus pra voltar da faculdade à noite, após ter perdido o ônibus da minha linha por uma questão de segundos:

"Puxa vida, agora vou ter que esperar mais meia hora pra voltar pra casa... Pior que vão passar umas quatro linhas diferentes, e nenhuma vai pra onde preciso. Aliás, nem sei se preciso delas ou não... Eu devia ver para onde elas vão algum dia antes de falar isso. Ou então subir, na louca, e ver até onde chego com elas. Pode ser perto de casa, pode não ser. De repente, é legal para conhecer um pouco mais a cidade e os arredores... Seria bom pra dar uma chacoalhada no dia-a-dia. Sempre reclamo que as coisas não mudam muito na minha vida, mas às vezes só um ato pequeno de imprudência e um pouco de ousadia podem dar uma estremecida em tudo que temos nela. É, é isso. Eu preciso fazer mais dessas pequenas coisas que, a princípio, não parecem mudar nada, mas mudam toda sua rotina de um jeito ou de outro. É tão fácil, não é mesmo?! Às vezes a mudança está a um sinal de parar prum ônibus que você nunca pegou, e ainda assim temos medo de fazer esses pequenos gestos. Por que será? O nosso descontento é com a falta de mudança na vida, ou com o fato de termos nos contentado fácil demais com aquilo que ela costuma nos dar e não sentir a necessidade de mudar? Acho que só tem um jeito de descobrir..."

Para o alívio da minha família e amigos, mesmo motivado por um curioso existencialismo de ponto de ônibus, decidi não aventurar-me na calada da noite com o próximo ônibus que viesse: li o destino final do ônibus que estava a passar, e algo na minha mente prudentemente apontou que não era o momento apropriado para ir até Americana às dez e meia da noite para descobrir o que ela tinha a mudar na minha vida.

No começo, aquilo me incomodava muito: tinha medo de estar ficando levemente louco, ou de, pior!, estar nessas obsessões pseudointelectuais causadas por estudos de mais e distrações de menos. Porém, comecei a achar aquilo curioso e, depois, interessante: acabei percebendo que, durante o dia-a-dia, praticamente não se oferecem momentos para refletirmos de maneira mais profunda e calma sobre aquilo que estamos fazendo e o que nos cerca, e essa ausência de reflexão pode se tornar uma grande fonte de angústias e dúvidas caso não tenhamos alguns momentos para destilá-las e transformá-las em alguns apontamentos e observações sobre o que estamos fazendo com as nossas vidas.

Ainda que aquilo me passasse um terrível mal-estar de estar pensando demais em momentos inoportunos e me fizesse voltar cheio de angústias de tarefas que, a princípio, não deveriam causar nenhum tipo de desarranjo psíquico, acabei percebendo que era um alívio ter aqueles minutos de reflexão sem rumo: eram eles que me faziam perceber que todo o resto do tempo eu estava ocupando minha cabeça com outras coisas, com outras pessoas e com outros processos, e que toda essa ocupação estava me deixando cego para algumas perguntas importantes que eu devia fazer de vez em quando para mim mesmo, só para me ver um pouco mais e saber como estou, para além das responsabilidades, deveres e afins que se esperam de mim.

Em um mundo que parece ter uma obsessão patológica em não te deixar sozinho ou sem uma avalanche de estímulos em nenhum momento, esse existencialismo de ponto de ônibus é o minuto de silêncio necessário para se ter um dos momentos mais temerosos e raros desses estranhos tempos modernos: aquele em que você fica sozinho, frente a frente aos seus pensamentos, e eles refletem tudo aquilo que você não tem tempo de ver em si próprio durante o resto do dia.
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¹ - Quando fui escrever o texto e fui relembrando os acontecidos, peguei a lista de compras para reproduzir aqui e dei risada ao ver os itens: é o tipo de lista esquisita que só gente que não se organiza muito para ir ao mercado faz. Mas aí fiquei feliz, porque ela me levou a uma associação bizarra: uma lista de compras é meio que como a vida se desenrola - às vezes, as necessidades que se colocam em ambas são imprevistas e muito estranhas se colocadas em conjunto, mas independente da bizarrice ou desconexão que apresentam, precisam ser sanadas para podermos ir em frente e se preocupar com outras coisas.

...

Oh não, aquilo aconteceu enquanto escrevia esse texto.

sábado, 2 de novembro de 2013

O homem cordial vinhedense (ou A classe média vai ao barbeiro)

. . Por Caio Moretto, com 1 commentário

Não há em Vinhedo quem não conheça o Chico (o barbeiro, não o Buarque). Há quem diga, inclusive, valendo-se de uma velha falácia, que se você não sabe quem é o Chico, você não é um verdadeiro vinhedense.

Não sei se por aprendizado profissional ou por seleção natural do ramo, Chico aprendeu a ouvir mais do que falar. Rapidamente, então, tornou-se um grande amigo de todos os vinhedenses com ego mais inflado.

Amigo, portanto, de todos os cidadãos do principado, o mestre barbeiro ouve diariamente, com muita paciência, seus fregueses entrarem e saírem de seu birô com as mesmas desculpas: “vou só no banco, você guarda meu lugar, Chicão?”, “vou só até ali, porque se eu não for, como o mundo depende de mim, talvez ele exploda, mas você segura meu lugar, Chiquinho!”

Chico, sábio, só alerta: “a ordem é de chegada, se outro entrar eu vou atender”.

O cidadão cordial vinhedense se irrita: é incapaz de admitir que a regra, que o processo, que essa  "formalidade inútil", seja mais importante que a (suposta) amizade que ele tem com o barbeiro.

Sérgio Buarque de Hollanda, pai do Chico (o Buarque, não o barbeiro - afinal nossa história tem traços  biográficos não autorizados), define assim uma das principais características do brasileiro: colocar os laços afetivos acima dos racionais, o que ele chamou de “homem cordial”.

Tenho minhas dúvidas se essa é uma característica do brasileiro ou da classe média, mas em ambos os casos o vinhedense é o cordial de dar inveja. Se você tem um problema, ele fala direto com o prefeito. Se você tem um prazo, liga no celular do secretário. Se você tem um compromisso, fala direto com o Chico.

Mas o Chico não se abala: “a ordem é de chegada...”.

Quando eu sofro alguma injustiça ou violência do Estado em Vinhedo, eu lembro do Chico. Porque meu problema tem duas dimensões: aquela que o homem cordial vinhedense entende, que me afeta diretamente e que ele quer solucionar ignorando o processo; mas outra que lhe escapa, que é o problema em si, sua causa, sua repetição.

Solucionar apenas o meu problema não acaba com a minha aflição, porque eu sei que o problema continua aí e que nem todo mundo é amigo do primo do brother do camarada do barbeiro do prefeito.

E eu não me engano: ser conservador não é ir sempre no mesmo barbeiro. Ser conservador é ser esse homem cordial, que quer solucionar o problema da família dele e não o problema em si, o problema de seu grupo e não a causa. Ser conservador não é querer que o pobre morra, é deixar o pobre morrer, porque é querer uma regra para manter todos na linha e uma exceção para garantir seu privilégio. É não se importa que a fila do SUS seja longa e pedir penas mais duras para quem desrespeita as leis, mas no barbeiro a história é outra história, barbeiro é besteirinha: "Pô, Chico!"

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