ou uma leviana tentativa de objetivar o sentimento
ou, ainda, anotações colhidas durante cinco meses de oficina com a Cia. do Latão
Brecht afirma: “para observar é preciso comparar, mas para comparar é
preciso ter observado em algum momento”. É desta simples frase dialética
que, talvez, nasce este texto, de uma tentativa de comparação a partir
de cinco meses de observação. Comparação, essencialmente, entre
possibilidades teatrais.
Por que ser dialético ao fazer teatro se esta linguagem deve ecoar no
sujeito? É a pergunta-acusatória que fazem aqueles que se valem da
fragmentação atual para pensar a encenação como campo de exploração do
subjetivo. Porém, acodem desesperadamente à mesma fragmentação para não
se posicionarem, narcotizados por uma suposta exacerbação dos sentidos,
em um transe quase orgástico. Antes fosse ledo, o vil engano de supor
que a dialética exclui o sujeito. Pelo contrário, ao deslocá-lo de seu
lugar de conforto e inseri-lo em um todo contraditório, em
transformação, o teatro épico ecoa de maneira devastadora no próprio
sujeito.
“Furar a cabeça do espectador, nem que seja a fórceps, para arrancar
questionamentos”, propõe o cineasta Camilo Cavalcante. E isso não
significa desprezar o público, mesmo porque nada mais honesto do que
buscar o distanciamento, que impede que o espectador se envolva
“emocionalmente” com a peça, chegando a ponto de alienar-se de sua
própria consciência crítica. Porém, essa honestidade atua como fim
último, pois em determinado momento é necessário trair este espectador.
Fazê-lo, por um instante, acreditar na possibilidade de desenlace, na
afirmação do esquema tradicional. Se os tubarões fossem homens, os
teatros do fundo do mar mostrariam valorosos peixinhos a nadarem, com
entusiasmo, rumo às gargantas dos tubarões. É por isso que Brecht nos
ensina a jogar com força a isca dramática, enganar o espectador para, ao
mesmo tempo, ser incondicionalmente sincero com ele, pois não se trata
de ganhá-lo, de provocar identificação, mas justamente de perdê-lo, de
colocá-lo distanciado e, por isso mesmo, emancipado. Emancipado da goela
dos tubarões do teatro.
E é justamente emancipado, talvez idealizadamente por um momento com as rédeas de sua própria capacidade de se emocionar, que o espectador do teatro dialético se vê frente a tal “emoção épica”, devastadora, aparentemente quase abstrata, metafísica, mas pelo contrário, extremamente material, pois sentida no âmbito da própria relação entre homens. Não se trata aqui de menosprezo a um tipo de arte, mas fato é que aquele que já sentiu a “emoção épica” não se contenta mais com a “emoção dramática”, mesmo porque o dialético só o é ao pressupor o dramático para com ele romper. Porém, é imprescindível a clara noção de que a busca pelo distanciamento não pode ser puramente formal, não tem a ver com estilo. Na verdade, ela não pode ser formalista nem conteudista.
A problemática de como causar estranhamento ou provocar a “emoção épica” traz também a questão, que pode ser uma falácia, de como sentir a “emoção épica”, posições ativas e passivas dentro de uma mesma construção. É certo que é preciso abandonar, de uma vez por todas, qualquer tipo de crítica moral. Brecht aponta que para isso é necessário mostrar um processo maior que o indivíduo, historicizar, causar olhar histórico e estabelecer conexões, tarefa cada vez mais essencial em tempos de suposta fragmentação. A cena precisa revelar outro tempo, além do tempo presente dela. É justamente o olhar histórico que permite desnaturalizar e levanta questões ligadas à causalidade social das relações. Isso ocorre, por exemplo, de forma exemplar, quando, na recente peça “O Patrão Cordial”, da Cia do Latão, os personagens sobem em um inventado pico do Jaraguá para relembrar fatos históricos da cidade. Ali, naquele momento, o drama do patrão e do empregado é contextualizado e deixa de ser puramente dramático. Irrompe-se, com brutal força a “emoção-épica”, termo talvez ainda abstrato, mas que o espectador que experimenta de certa entende.
Porém, como enfatiza Sérgio de Carvalho, há que se ter a precisa
consciência de que este teatro deve buscar revelar as contradições, mas
não resolvê-las, pois a resolução pede uma ação social coletiva e não
somente uma ação estética e individual, por mais que uma pressuponha
sempre a outra, afinal é dialética. Marx e Engels escrevem, em “A
Ideologia Alemã”: “os indivíduos isolados apenas formam uma classe na
medida em que têm que manter uma luta comum contra outra classe”. É por
isso que as forças coletivas devem ser representadas na relação entre
indivíduos. As coisas não se resolvem ideologicamente, mas na prática
material. No idealismo, o sentimento vem antes da ação. Ser materialista
é justamente o esforço de não abstrair as pessoas da realidade delas.
É tarefa também deste teatro fugir da tendência à harmonização, buscar a cena mais torta, de personagens com consciência torpe, falhada. Uma cena é sempre morta se é a ilustração de uma ideia. Para ser dialético é preciso lutar contra a cena-estado a favor da cena-relação, que traça claramente situações gestuais em que um está em relação com o outro. Ou, como diz uma personagem da peça-exercício realizada durante a oficina: “E se nós tentássemos estabelecer relações entre essas pessoas, olhar nos olhos? Isso também é teatro político”. De fato, a forma tem que vibrar num registro mais torto, mas isso não pode ser formal como querem os pós-modernos. Temem um teatro escancaradamente político, em nome de um agir político que parta da experiência do sujeito em contato com novas formas. Acreditam piamente que são as formas que transformam o indivíduo, mas olvidam que é o choque entre forma e conteúdo que “ressignifica” o próprio fazer teatro e a experiência de uma pessoa, enquanto espectadora desse teatro. Não percebem o quão antipolítico é dispensar a relação entre homens e idealizar uma política que se resolva per se, no íntimo preservado. Ou pior, percebem sim.
Assim são os tempos: medonhos, tétricos, quase desesperadores. Mas é preciso manter-se firme, convicto, mesmo que para isso seja necessário constantemente se voltar aos grandes, para algo deles se apropriar. No caso do texto, se apropriar significa usar a primeira pessoa, mas, claro, do plural, para idealizar uma coletividade: É a sensação de desacerto, que nos vem perante as reproduções dos acontecimentos ocorridos no mundo dos homens, que reduz nosso prazer no teatro. A razão desse desacerto é o fato de a nossa posição em relação ao objeto reproduzido ser diversa daquela dos que nos antecederam. Contra isso, historicizar sempre.
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Bruno Mello Castanho é diretor de cinema e roteirista, participa do coletivo Cinefusão e tem acompanhado de perto o trabalho da Cia. do Latão. O texto, publicado originalmente no site do coletivo, foi gentilmente cedido pelo autor.
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