VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

domingo, 30 de setembro de 2012

Coluna do Leitor - Em defesa de Lana

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários



Money is the reason we exist, everybody knows it, it’s a fact, kiss kiss”. A princípio, uma afirmação assim peremptória sobre a natureza humana deveria causar asco, sobretudo àqueles que, como nós, recebem este conteúdo cultural no contexto da ‘cruzada civilizatória’ empreendida por uma nação que aspira a ascensão a outro patamar de desenvolvimento econômico. Isto é, a frase extraída da música National Anthem, de Lana Del Rey, deveria causar reações polarizadas e excludentes: ou reclamaria uma adesão irrefletida por quem, sem muitos problemas de consciência, consome produtos ideológicos vindos sobretudo dos EUA, ou motivaria rejeição imediata. Confesso que tenderia a me encaixar neste segundo grupo, ainda mais quando o assunto são cantoras pop que a todo momento nos são enfiadas goela abaixo. Mas há algo em Lana Del Rey que desestabiliza esta polarização e – pasmem – cria uma identificação das intenções da cantora conosco, habitantes do famigerado terceiro mundo.

Quem é familiarizado com a crítica de arte produzida durante o século XX sabe que, paulatinamente, o vocabulário que opunha verdadeiro e falso, essência e aparência foi abandonado. Aqui não é o lugar para se refletir sobre este movimento crítico; talvez reste somente a hipótese de que o movimento que caracteriza a indústria cultural seja precisamente a vitória da aparência sobre a essência, ou a vitória do falso sobre o verdadeiro. Isto não significa uma reivindicação ingênua de uma ‘essência perdida’ da arte, à qual deveríamos voltar. Significa somente que, assim como quase tudo, também a arte se transformou em produto, e, sendo assim, toma parte no jogo de fetichização caro à produção de mercadorias. Em que constituiria, neste sentido, a essência da arte? Em uma pílula, seria o fascínio diante do desajuste entre o pensamento e a realidade. O pensamento artístico seria, portanto, essencialmente angustiado por encarar, a todo momento, esta inadequação fundamental. Diante deste quadro, o que seria a arte falsa? Seria a arte fetichizada, isto é, transformada em objeto completamente manipulável. Uma arte que não é mais expressão de angústia diante do desconhecido, que não traz em si nenhum rastro de opacidade. Ao contrário, trata-se de uma expressão artística que é absolutamente luminosa, segura de si, e expressaria esta segurança no aparato técnico que lhe dá suporte. Podemos ver isto claramente no âmbito da música, sobretudo esta feita em escala industrial, em que tudo é contornável, ao ponto de nos perguntarmos (como bem me disse Felippe Pompeo no último fim de semana) se aquilo foi realmente executado por um ser humano que, obviamente, é passível de erro. Trocando em miúdos, vivemos a era do autotune porque vivemos a era do fetiche.

Em um primeiro olhar, a música de Lana Del Rey se encaixaria sem nenhuma reserva a este panorama. A audição de seu álbum Born to die propicia um belo exemplo de perfeição técnica: tudo está no lugar, tudo foi devidamente pensado e executado de modo a produzir algo absolutamente apreensível pelo ouvido que cresceu em meio à escola da indústria fonográfica. Até aí, nada a separaria de outras cantoras como Lady Gaga e Beyoncé. Há, no entanto, uma impressão que carrego desde a primeira vez que a ouvi: a de que existiria um núcleo ‘crítico’ em sua música, algo que a afastaria da condição de mero objeto de consumo. É óbvio que Lana Del Rey é uma autêntica cria da indústria cultural, acerca disto não há dúvidas. O que se coloca em questão é como ela faz uso desta posição ao centro do coração pulsante da mercadoria.

Voltemos à frase que abre este texto. Dizer que o dinheiro é a razão pela qual existimos é, em um primeiro plano, algo que, de tão desconcertante, a afasta de lições de boa conduta e moral – um pouco próximo da auto-ajuda – que encontramos em Lady Gaga (Born this way, por exemplo) ou Beyoncé (cuja produção é recheada do novo “poder” feminino). A frase de Lana parece almejar o desconforto: ao contrário de suas colegas, sua mensagem não é “você também é especial e poderoso”, mas “você é insignificante, mera mercadoria”. Este segundo sentido é potencializado pela drástica tensão contida em sua música: em todo o álbum, não somente nesta canção, é possível encontrar frases de teor desconcertante – seja quanto à consciência de que ela mesma é uma mercadoria da indústria, seja no que toca a construção da feminilidade em consonância com a construção da posição de objeto de fetiche – entremeadas a afirmações plenas de consequências: “winning and dining, drinking and driving, excessive buying, overdose and dying, on our drugs and our love and our dreams and our rage, blurring the lines between the real and the fake”. Tenho dificuldades em achar um exemplo melhor de uma produção tão potente quanto esta, tão consciente de si, feita nos últimos anos de indústria musical.

Se tudo isto é uma estratégia de marketing, é difícil dizer. Arriscaria inclusive afirmar que a questão pouco importa. Como afirma a própria Lana, sua música traz consigo a capacidade de borrar os limites entre o falso e o verdadeiro, precisamente por se colocar no exato ponto em que a arte se transforma em mercadoria (aqui até mesmo sua controversa participação no programa Saturday Night Live se reveste de interessante caráter inquietante). Neste ponto, questões como esta acabam perdendo a função. O que resta de crítico em sua música diz respeito a este olhar desconcertante que nos é lançado da linha de montagem da indústria cultural: algo como um olhar petrificante e resignado, de uma moça que sabe que está prestes a se transformar em produto de fetiche, seja sexual, seja musical. Este olhar que nos tira de nossa posição confortável de meros consumidores, seja de mulheres, seja de arte. Trata-se de um olhar que diz: “você pode me consumir, mas tenha consciência de que consome um objeto falso, e que o único instante de verdade nisto será precisamente esta rápida fagulha de consciência”. Curiosamente, como aventado no começo deste texto, há uma proximidade entre esta posição – criada à revelia por Lana no cerne da indústria – e a nossa. Nós, enquanto coadjuvantes do mundo ‘civilizado’, enquanto meros aspirantes, falamos deste mesmo lugar: daquilo que está na esteira da fábrica, prestes a ser processado. Há com isto um distanciamento – mínimo, é verdade – essencial quanto à ideologia: algo que a música de Lana cria à força, como se abrisse espaço em meio à areia movediça que é o consumismo norte-americano. Sua lição para nós, produtores de arte em países marginais, é enigmática; mas por isto mesmo muito poderosa.

Felipe Bier Nogueira insiste em ser torcedor do Palmeiras, mas tem habilidade entre Oito Mãose pode ser encontrado também em Nowhere Land.

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Nem isso

. . Por Unknown, com 1 commentário

Em 2008, lembro que a Ciência garantia a segurança de todos frente ao que deveria ser o maior experimento realizado na Terra. O LHC (Large Hadron Collider), cujo custo estimado era de cerca de US$ 8-10 bilhões, entrava em funcionamento naquele ano. O objetivo principal dele era investigar uma das questões fundamentais da ciência: a origem da massa. Que belo pretexto para tantos bilhões!
Conforme a física moderna, a matéria seria formada por pequenos corpúsculos indivisíveis, as partículas elementares. O colisor nada mais seria do que uma máquina gigante, construída nos subterrâneos próximos a Genebra, que aceleraria essas partículas atômicas provocando choques de umas contra as outras, só que com velocidades semelhantes à da luz. Nas colisões, então, a energia de movimento das partículas seria transformada, segundo Einstein, com E = m c², em outras partículas. Tal fato possibilitaria o estudo da composição da matéria por meio das diferenças de massa entre as partículas.

Mas -  tinha que haver um mas - em meio às possíveis descobertas, as colisões poderiam ainda criar mini buracos negros. Ora, buracos negros não são aqueles trens que podem ser fruto da morte e explosão de estrelas?? E esses buracos negros não concentram enormes quantidades de matéria em seus centros, núcleos estes que emitiriam sinais de radiação e que, literalmente, sugariam tudo quanto é corpo celeste ao redor, tendo uma gigantesca força gravitacional?? Não existiriam buracos negros, inclusive, cujo diâmetro seria equivalente à distância do Sol a Saturno??
Desse modo - ah, que primor de raciocínio lógico -, o LHC, ao produzir buraquinhos negros em seu interior, com energias incríveis, destruiria o mundo??? Madre mía de mi alma!! Partículas se chocam, os físicos entendem a matéria, criam-se mini buracos negros, tudo ao mesmo tempo, e o mundo se acaba: Genebra engole o planeta!! O genebrino mais famoso do mundo não ficaria muito contente, imagino, coitadinho do Rousseau.

Não. A energia liberada pelas colisões seria equivalente ao voo de um bando de mosquitos. “O Segredo” do LHC, portanto, estaria em concentrar energia em uma escala submicroscópica. Ora, ora, ao espantar pernilongos, ninguém cria buracos negros por aí. E os mini buracos negros teriam existência muito efêmera, em questão de instantes eles desapareceriam, pois suas massas são infinitamente pequenas para atrair qualquer outro objeto. Não custa lembrar, são escalas. Adicione ao seu vocabulário de graus, metas, focos, estimativas e investimentos: escalas!

Ainda em 2008, todavia, no Hawaii, dois malucos entraram na Justiça - sei lá em que instância, talvez divina -, para impedir o funcionamento do novo brinquedinho da Física, do mesmo LHC. Não há dúvidas quanto a isso, é um belo pretexto para entrar na justiça: o mundo iria acabar!

Nos nossos trópicos, no início do século passado, afe, isso tudo já tinha virado samba. Assis Valente, um baiano que no Rio de Janeiro teve uma vida bastante atribulada, compôs uma música até hoje muito conhecida. A canção ele fez por causa do anúncio da passagem do cometa Halley, em 1938, quando surgiram boatos de uma colisão com a Terra e o consequente apocalipse. Carmem Miranda gravou:

Anunciaram e garantiram que o mundo ia se acabar
Por causa disso minha gente lá de casa começou a rezar...
E até disseram que o Sol ia nascer antes da madrugada
Por causa disso nessa noite lá no morro não se fez batucada”.

Enquanto uns constroem um trem com não sei quantos bilhões para dizer como se constitui a massa dos corpos, da matéria, não contentes em perceber que os corpos simplesmente existem, vejam só, outros entram na justiça para evitar o fim do mundo. Porém, muito mais inteligente é fazer samba com isso!

Mas - tinha que haver outro mas - em julho último, quatro anos se passaram, nem a Justiça hawaiana ou divina pode deter, o LHC continuou seus trabalhos e, num dia como outro qualquer, ou não, ta-dan, o mega aparelho encontrou a partícula que originou as demais partículas. Sim, o Bosón de Higgs, previsto pelo físico Peter Higgs na década de 1960, e ainda apelidada de “partícula Deus” por outro físico, Leon Lederman, enfim, existe. Quer dizer, há uma chance muito, muito pequena agora dessa partícula, que teria se formado em seguida ao Big Bang, não existir, conforme os cálculos feitos a partir dos experimentos no LHC. Quem sabe o Bóson de Higgs não tenha levado a alcunha  em referência ao Deus de René Descartes, para quem o mundo não teria por que não houvesse uma Razão, “Deus”, quem sabe. 

Bom, talvez coubesse uma conclusão indignada, como quem vocifera contra a Ciência inútil, culpa a política elitista e o sistema – ah, o sistema – diante de tantos desesperos e misérias humanas. Uu, fico com Manoel de Barros, para quem a arte e a poesia são igualmente inúteis. Há gente que acredita em Deus, há gente que acredita, digo, calcula a partícula, o Bóson de Higgs, ou os dois. Há gente que não acredita em Deus, que não se importa com a matéria atômica. Há gente que acredita e faz tanta coisa. Não vem ao caso, que preguiça, mas algumas coisas são mais importantes que outras, não nego.
No fim das contas, são todos bons pretextos pra seguir por aí. Fato é que com a “descoberta” do LHC o mundo não acabou, pelo menos por enquanto, uma pena para alguns, um alívio para muitos. Pior, não houve samba, ninguém cantou, ninguém dançou, que triste, que chato. Um pretexto, é uma questão de pretexto apenas, mas nem isso foi suficiente.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Alice no País das Maravilhas: literatura cristã

. . Por Caio Moretto, com 3 comentários

Rejeite, porém, as fábulas profanas de velhas e exercite-se na piedade”.
1 Timóteo 4:7

Além de terem sido adaptados para os cinemas e terem feito sucesso nas telas nos últimos anos, os livros As Crônicas de Nárnia, O Senhor dos Anéis e Alice no País das Maravilhas possuem outra semelhança menos conhecida: todos são livros de ficção com pretensões cristãs. Mas será que podem ser chamados de literatura cristã?

narniaDos três livros citados, o pano de fundo religioso de As Crônicas de Nárnia, conjunto de livros de ficção escritos por C. S. Lewis talvez seja o mais conhecido. Nessa obra C. S. Lewis, “o mais relutante dos convertidos” (como ele define a si mesmo em um de seus livros mais autobiográficos) inventa um mundo fantástico com o objetivo de recriar padrões da mitologia cristã. Além das Crônicas, os programas de rádio de Lewis durante a primeira Guerra Mundial e a posterior compilação desses textos no livro Cristianismo Puro e Simples, fizeram do autor um dos mais influentes escritores cristãos de ficção e de não ficção de seu tempo.

A trilogia O Senhor dos Anéis, de J. R. R. Tolkien, mais sutil em suas referências cristãs, também carrega uma legião de fãs, muitos dos quais nunca souberam dos objetivos de seu autor. Tolkien e C. S. Lewis eram amigos próximos e chegaram a discutir bastante sobre o grau de sutileza ou de clareza que a proposta cristã deveria ter em seus textos (link para as cartas de Tolkien e para um texto sobre o tema). Tolkien
senhordoaneislivros
acreditava que se o leitor de Lewis percebesse que o leão das Crônicas remetia a Deus, por exemplo, no mesmo instante a magia da ficção se quebraria e o leitor perderia o interesse. Por isso, O Senhor dos Anéis é uma obra menos alegórica, pois, mais do que criar relações diretas entre a fantasia e a mitologia cristã, Tolkien pretende reconstruir a estrutura desta última para quiçá facilitar a apreensão desta por futuros fiéis. As duas sagas tornaram-se best-sellers mundiais.
Imagino que antes mesmo de falarmos de Alice no País das Maravilhas, talvez alguns leitores já estejam surpresos com a notícia de que O Senhor dos Anéis é considerado por alguns como um livro cristão. Cabe aqui, portanto, a seguinte pergunta: é possível definir esses livros como cristãos? Existe algo que se possa chamar de literatura cristã?

220px-AudenVanVechten1939Segundo o poeta W. H. Auden, se ignorarmos a intenção do autor, não há nada que sustente a existência dessa categoria literária. Cristão e homossexual nos anos 1930, Auden talvez tenha sido um dos crentes que mais sofreu com a batalha interior por integridade e coerência. Uma vez, em um ensaio para a revista americana The New Yorker, o crítico literário Adam Gopnik, afirmou que a temática de Auden pode ser resumida em uma frase: “a reconciliação da ideia cristã de que a salvação depende do amor universal indiscriminado”. Talvez o fato deva-se a essa constante busca por coerência, ou talvez apenas a uma sensibilidade interpretativa diferenciada, de qualquer forma, Auden foi ironicamente quem melhor soube explicar as pretensões cristãs de Lewis Carroll. Ironicamente, pois o poeta detestava escrever ensaios. Em seu livro A mão do artista, o escritor nos diz, sem meios termos, que faz crítica somente pelo dinheiro e lamenta não poder viver só de poesia. Ainda assim, escreveu observações fascinantes sobre literatura, duas das quais são fundamentais para entender a relação de Lewis Carroll com aquilo que se chama de literatura cristã.
A primeira, diz respeito a arte e cristianismo: “Não pode haver uma arte cristã, da mesma forma que não pode haver uma ciência cristã ou uma dieta cristã. Apenas pode haver um espírito cristão, segundo o qual um artista ou cientista age ou não.” A definição de literatura cristã, neste ponto, torna-se problemática. Para o poeta, esta não existe, haveria apenas uma motivação cristã que levaria o autor a escrever um livro ou poema. Assim, só a intenção ou a inspiração do autor poderiam ser definidas como cristãs, a arte não.
Não é difícil confirmar a tese de Auden. Basta aplicar sua definição aos clássicos As Crônicas de Nárnia e Senhor dos Anéis e observar que sem o conhecimento prévio das intenções de seus autores não encontramos nenhuma referência direta a Cristo. Desta forma, somente um estudo sobre a vida dos escritores poderia definir que essas obras são cristãs.
Neste ponto - e voltamos então ao intuito deste artigo – levanto a seguinte questão: por esse mesmo critério, não deveríamos considerar também o autor Lewis Carroll como um dos mais importantes escritores de ficção da tradição cristã?
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O livro Alice no País das Maravilhas, escrito por Lewis Carrol para sua sobrinha Alice, comemorou 150 anos em 2012 e já é consagrado como um clássico da literatura infanto-juvenil. Coberta de fantasia e de jogos lógicos, a ficção é conhecida por seu estilo fantasioso e considerada por muitos como uma obra-prima da literatura nonsense, característica que inspirou diversos artistas, como o pintor surrealista
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Salvador Dalí, que chegou a fazer diversos desenhos para ilustrá-la (como esta ao lado). Neste século e meio de leitura, porém, pouco se falou das pretensões cristãs do autor por trás deste estilo.

Lewis Carroll era um homem bastante religioso, chegou a estudar teologia e foi até pastor. Seu primeiro sermão, registrado por um dos fiéis em um diário de orações, é bastante revelador sobre o propósito moral de seus textos. Após chamar a atenção dos ouvintes para a pergunta de Jesus ao cego Bartimeu - “o que você quer que eu lhe faça?” -, Carroll propõe o seguinte questionamento: “Seríamos felizes no céu se fôssemos para lá com todos os nossos desejos malévolos? Se os desejos dos contos de fadas são sempre atendidos – beleza, riqueza, status – teria o cego sido feliz em um belo palácio, com lautas refeições, se continuasse cego?”. E finaliza dizendo que “duas coisas são necessárias para que sejamos purificados: a Sua Vontade e a nossa vontade. Ele está sempre pronto: podemos contar com Ele, mas também precisamos fazer a nossa parte…”

07_A_Lagarta_ilustracao_de_Sir_John_Tenniel_para_o_livro_Alice_no_Pais_das_Maravilhas_1865_07Carroll não tinha a ambição de escrever um best-seller ou de se tornar um grande escritor. Ainda assim, o conteúdo de seu livro não tem nada de despretensioso. Se, por um lado, o leitor de Alice (adulto ou criança) dificilmente encontrará uma “moral da história” ao final da leitura, como encontraria de forma mais evidente em uma fábula ou conto de fadas, por outro, deveria se questionar: será que isso não foi bem calculado pelo autor? A observação dos comentários e sermões de Carroll parecem indicar que essa aparente falta de uma “moral da história” em Alice no País das Maravilhas é exatamente o reflexo das pretensões evangelísticas do autor, um escritor cristão que buscava aproximar sua sobrinha (e todas as crianças) da moral do Evangelho como ele a entendia. Nesse sentido, é possível afirmar que a ruptura com a moral vigente em Alice, que resultou na exploração primorosa de seu estilo nonsense, se deve exatamente à busca do autor por uma moral cristã verdadeira, que ele acreditava estar sendo corrompida pelas histórias de nobreza, riqueza e beleza em sua época. Alice no País das Maravilhas é, portanto, um texto de inspiração cristã, porém de vanguarda, que rompeu com ideologia dominante de seu tempo precisamente porque buscou uma moral cristã.

lewis3Se a afirmação soa como estranha, o fato deve-se em grande parte de um preconceito que aceitamos, muitas vezes, sem perceber. Quando ouvimos que uma história possui uma moral, fazemos logo duas suposições. Primeira: trata-se da moral cristã. Segunda: deve ser um texto conservador. Nosso primeiro impulso, como brasileiros, é muitas vezes associar qualquer ideia de moral à um conceito vago de moral cristã. E nosso segundo erro costuma ser associar toda moral cristã a um pensamento político conservador. Desta forma, em um pré julgamento apressado consideramos que se algo é cristão, será conservador. Pois bem, os textos de Lewis Carroll são exemplos de como essa análise simplista pode ser equívoca.

Já a segunda observação de Auden é específica sobre a obra de Lewis Carroll e em uma só frase explica o alcance universal das histórias de Alice, que atrai tanto cristãos quanto não-cristãos: “No País das Maravilhas, Alice tem de se adaptar a uma vida sem leis; no País do Espelho, a uma vida governada por leis com as quais não está familiarizada.” As leis, aqui, são tanto as normas estabelecidas pelos humanos ou pela rainha de Copas quanto as leis físicas, que permitem que Alice encolha e passe por uma portinha de alguns centímetros, quase se afogando nas lágrimas que derramou quando era grande. Não é essa a nossa busca, tanto pela ciência quanto pela espiritualidade: entender as leis que regem nosso universo?

Será que as pretensões evangelizadoras dos autores foram alcançadas? Quando era ateu utilizava a frase de Dostoiévski de que “há no coração do homem um vazio do tamanho de Deus” para criticar cristãos, à la Marx e Feuerbach, e dizer que o homem projetava esse vazio para fora de si, construindo a imagem de Deus à semelhança de suas carências e ideais. Hoje acredito que esse vazio foi projetado para que o homem pudesse buscar a reconciliação com um Deus que quer se comunicar. Se as pretensões dos autores foram atingidas, literalmente para os crentes e ironicamente para os ateus, podemos afirmar que “só Deus sabe”. Mas, enquanto essa medida nos escapa, ficamos com a certeza de que o vazio, todos o carregamos. A pretensão da literatura é preenchê-lo, ainda que momentaneamente. Os métodos criam classificações e separações, literatura cristã e não-cristã, crentes e ateus, mas o vazio é o mesmo, a busca é uma só.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Conspiração nossa de cada dia

. . Por Thiago Aoki, com 8 comentários


“Nada queima por acaso nas favelas paulistanas” era o nome do artigo. Bem escrito, mostrava um estudo onde ficava clara a relação direta entre os incêndios nas favelas da cidade de São Paulo e as áreas de interesses do mercado imobiliário. Assustador e, mais assustador ainda, o silêncio sobre um tema que valeria, no mínimo, uma investigação do ministério público diante de tanta coincidência.

Ainda estava inerte diante da leitura e com pensamentos ofensivos na cabeça, quando me dei conta que somos totalmente viciados e movidos por teorias conspiratórias.

O Brasil entregou a Copa de 98, Bush sabia dos ataques terroristas do 11 de setembro, Salvador Allende foi morto pelos militares, Raí está saindo com o Luciano (isso, aquele do Zezé di Camargo), o mundo acaba em 2012, a Xuxa tem pacto com o demo.

Claro, algumas destas são mais sérias, mas, enfim, nossa vida banal é também movida pela necessidade sherlockhomiana de fazer conexões das mais estapafúrdias, ligar pontos distantes, para chegar em uma tese mirabolante que justifique as coisas como são.

Um dos momentos mais propícios para criar e proliferar esse tipo de teoria é lavando a calçada. Sempre que lavamos a calçada, estamos em contato potencial com quatro, cinco, seis vizinhos. Outro dia estava sentado na varanda enquanto a Janaína, emprega da dona Jussara (vizinha da direita) lavava a calçada da velha senhora e veio puxando assunto como quem não quer nada, até expor sua tese.

Segundo ela, o jovem casado Manoel (vizinho da frente) estava saindo com a conservada e desquitada Sara (vizinha da frente, à direita do seu Manoel). Segundo a astuta empregada, era sempre na hora do almoço que os dois se encontravam, enquanto a mulher do rapaz trabalhava. Isso quando eles não saíam juntos com o carro dele. Claro, que ela não viu absolutamente nada disso que disse, a não ser uma ou outra carona entre ambos ou quem sabe um pedido de açúcar, coisa de vizinhos. Mas, com a certeza que falava, parecia que tinha tirado a informação de um banco de dados especializado em adultério, história de dar inveja a Nelson Rodrigues, conspirador mór dos costumes humanos.

Outro lugar ótimo para conspirações é o trabalho, e normalmente os alvos preferenciais são os chefes. Têm aqueles que até se vangloriam ao saber que os subalternos falam sobre eles, ainda que mal. Já outros, nem fazem ideia de quantas gerações suas estão sendo colocadas em xeque no Bar do Zézão enquanto a cabeça descansa no travesseiro de pluma de ganso. Talvez seja a luta de classes reprimida dentro de cada um expelida em sussurros. A especulação sobre a vida alheia é, inclusive, um importante elemento dentro da consciência de classe. Os trabalhadores não se unem com grupo de estudos sobre “O Capital”, mas sim quando saem para jogar bola, para beber ou quando criam teorias sobre a vida do patronato. É provável que nas greves do ABC, lá estavam, entre uma assembleia e outra, operários rindo entre comentários maldosos e, por que não, justos sobre a chefia.

Por fim, temos o velório, um antro da conspiração. Normalmente reúne-se muita gente que não se encontra há muito tempo. E, já que a vida é a arte do encontro, em cada canto do velório tem uma rodinha de conversa para tirar atraso sobre a vida de alguém. É como o resumo semanal de novelas, onde em poucas linhas se sabe o que vai acontecer durante toda a semana da Avenida Brasil. Assim é o velório onde, durante apenas um dia, descobre-se de tudo que acontecer vida de todos nos últimos anos. Às vezes sobra até pro morto, e olha que o pobre defunto, mesmo ouvindo em alma, não tem condições sequer de tirar satisfações com os conspiradores, a não ser vingando-se com uma puxada na perna dos sujeitos durante a madrugada. Aliás, a mais corrente conspiração é sobre a morte em si. Quais foram as últimas palavras, se ele pressentiu que ia morrer,  se era uma pessoa íntegra em vida, quem estava junto na hora da fatalidade, se ele sofreu, pra quem ele estava devendo, quem ficou com a herança, e por aí vai. Já faz parte do ritual de passagem um bom diz-que-diz.

Pois bem, caro amigo, desculpe toda essa minha conspiração sobre as conspirações, mas de uma vez por todas, pare com esse lance de fazer fofoquinha por aí. Pegue logo seus quatro cinco acontecimentos, junte todos no mesmo bolo, crie finalmente uma bela teoria conspiratória e defenda como verdade absoluta diante de todos. Não tenha vergonha de exercitar o Dr. House que há dentro de você. A jocosidade da conspiração despretensiosa e certeira já virou elemento central de nossa sociabilidade. Seja pra lidar com suas frustrações, seja pra fingir que a vida faz algum sentido, espalhe a conspiração. Alguma hora você acerta.

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