quarta-feira, 23 de maio de 2012

ZOOM IN - ZOOM OUT

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários

REC. Como todo jantar que se preze, a refeição estava atrasada. Muitos eram os motivos. Melhores eram os vinhos. Acompanhavam diversas palavras. Não muito mais que pequenas frases. Diálogos que se findavam mui rapidamente. Costume desses tipos de encontros, onde velhos casais de amigos se visitam para uma comida e creem que a amizade e o papo levam a mesma dinamicidade de 30 anos atrás. Ainda que insistam, quando não se tem muito mais o que assuntar, comentam o passado, num rasgo de saudosismo de tempos compartilhados.

A luminária pendia do teto até próxima à mesa de jantar - de madeira maciça, talhada a mão -, iluminando os traços frutados de vinhos chilenos. Do balcão, que ligava a cozinha à sala de jantar, sugere o anfitrião que as moças escolham um dos discos da coleção de vinis. Das caixas inicia o som estéreo do ao vivo de Elis, Transversal do Tempo, compondo a trilha sonora daquela conversa, embevecidos pelo aroma delicioso do forno.

Entre queijos, azeites, vinhos e memórias, o paladar finalmente foi agradado, ao apreço de Fascinação. Nada muito elaborado. Entre Saudosa Maloca e Boto, a anfitriã, guiada por traços de ameixas, se levanta, caminha até o marido da amiga, tremula os braços em movimento circular, dobra o corpo, abaixa a cabeça, estica a mão e convida-o a uma bela valsa ao som de Cão sem Dono. Momento sublime e de constrangimento para o casal que ainda se encontrava na mesa. Olhares trocados. Convite feito.

Os dois casais a deslizarem pelos tacos da sala. Risadas ao ar. Noite calma. Ritmo temporariamente quebrado pelo som das diversas fitas, CDs e DVDs que no chão caem. Esbarrão dos primeiros dançarinos na pilha de vídeos. Cópias de diversos trabalhos do cinegrafista grisalho anfitrião. Nada que esmoreça o alvorecer dos instintos taninos daquela balada memorialista de tempos pesados.

...entretem-se na troca de casais e embarcam no sambinha de Querellas do Brasil. Sentimento nacionalista exacerbado. Algumas lágrimas controladas. Símbolo da memória corporal dos dias de liberdade arrancada. Como canção de anunciação, Cartomante surge.
Nos dias de hoje é bom que se proteja
Ofereça a face pra quem quer que seja
Nos dias de hoje esteja tranqüilo
Haja o que houver pense nos seus filhos
Filhos bem cuidados. Já moços. Alguns casados, outros na faculdade. Tranquilidade......nos dias de hoje.
Não ande nos bares, esqueça os amigos
Não pare nas praças, não corra perigo
Não fale do medo que temos da vida
Não ponha o dedo na nossa ferida
Analepse. Como se lhe trocassem o filme no projetor. Sai rolo realidade. Uma imagem recente lhe vem a cabeça. Mãos para cima, com dedo médio em riste. De cima do palco a visão era nítida. O público fazia igual e cantava em coro - foda-se vocês; foda-se suas leis (...). A batida sampleada comandando o ritmo. Rap. Sente o peso da câmera no ombro com a vibração do palco. Uma prisão ao final do espetáculo.




Chacoalhar de cabeça. Aperto no peito. Angústia. Sente-se logo aliviado. Nos passos embalados por Elis, dança. Sorrisos. Antes que pudesse esquecer a imagem anterior, dor. Sente a pisada. Aquela unha encravada. Câmera na mão, olhar vidrado naquele que falava. Prédio. Gente. Centro. Mais de cinco anos que ali vivem. Grava.


Realidade. De supetão.
Cai o rei de Espadas
Cai o rei de Ouros
Cai o rei de Paus
Cai não fica nada
Suor. Tensão. Caído. Percebe, do chão, as três cabeças em sua direção. Preocupados o ajudam a levantar. A dor não é na unha. Dói o estômago. Registros. Muitas filmagens. Difícil digestão de uma vida atrás da câmera.

Em tempos de comissões, as verdades aparecem. Sua incapacidade de se envolver mais do que o registro. Trabalho. Era isso. Só isso. Agora, cantar e dançar. Trilha de uma época que abraçou causas. Tempos de fronte à mira. No foco da câmera. Crimes. Censura.
É só um pensamento, bote no orçamento
Nosso sofrimento, mortes e lamentos,
Forte esquecimento de gente em nosso tempo
Visto como lixo, soterrado nos desabamento
Em favela, disse marighella. elo
Contra porcos em castelo
O povo tem que cobrar com os parabelo
Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo
E é vítima, agressão de farda é legítima.
Barracos no chão, enquanto chove.
Meus heróis também morreram de overdose,
De violência, sob coturnos de quem dita decência.
Homens de farda são maus, era do caos,
Frios como halls, engatilha e plau!
Carniceiros ganham prêmios,
Na terra onde bebês, respiram gás lacrimogênio.

...seus dois mais recentes trabalhos. Filmar. Gravar. Vinhos chilenos. STOP.



_desafio sugerido por Thiago Aoki, indigesto chinês.

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