domingo, 20 de maio de 2012

Quem/o que você quer ser quando crescer?

. . Por Caio Moretto, com 1 commentário


Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo irmão.
Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca.
E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos.”

(O operário no mar, Carlos Drummond de Andrade)

Que espelho cruel é um homem sem a sorte que eu tive. Penso nas pessoas que não têm nada e me desprezo a seus olhos. Quase não tenho coragem de pensá-las no singular. Dói menos pensar na miséria do que em um único miserável. Minha melancolia gauche não suporta um indivíduo singular. Que fiz eu para merecer tão mais que ele?

Tento ser feliz por culpa. Olho para minha tristeza, para meus problemas: problemas pequenos de um coração pequeno. Minha tentativa é matá-los de vergonha, por serem fúteis, por não serem nada: que são os meus problemas perto dos problemas de um desafortunado? Eu tive sorte. Fico feliz por um instante. Não seria justo ser triste. O mínimo que devo ao miserável é ser feliz. Será que ele se imagina em meu lugar? Serei eu um espelho menos cruel? Se a felicidade não está em mim... Com meu salário ele seria feliz? Quantos espelhos quebraria? Será que me olharia nos olhos? Não, pensar que no meu lugar ele seria fraco como eu não me redime.

Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio de escravos”
(O sentimento do mundo, Carlos Drummond de Andrade)

Não sou livre. Vejo as pessoas e vejo seus problemas. Vejo milhões de pedras no meio do caminho. Não pego nenhuma. Tenho medo da avalanche? Não. Elogio a avalanche. Mas não movo uma pedra. A metáfora é fraca. As palavras são fracas. Não são pedras, são pessoas. O mundo não tem problemas. Tem pessoas com problemas. Que são problemas sem pessoas? Pedra sou eu, que as vejo e não faço nada. Que poderia fazer eu com sonhos burgueses em frente ao espelho? Em frente ao operário?

Sim, meu coração é muito pequeno. Só agora vejo que nele não cabem os homens.”
(Mundo grande, Carlos Drummond de Andrade)

Quero ajudar o próximo, mas faço contas. Meu coração empresa não admite o prejuízo.

Quem eu quero ser quando crescer? Penso que quero uma casa, um emprego, um carro; que não quero problemas, quanto mais os do outro; penso que quero sossego. Mas não sei se é verdade. Que faria eu com o sentimento do mundo e sonhos tão burgueses? Mais escravos? Problemas pequenos de um coração pequeno. Sossegar um coração pequeno pode ser fatal.

Leio em Antônio Cândido que a ideia de escravo em Drummond é a de um homem privado dos meios de humanizar-se. Pode um burguês humanizar-se? Posso eu?

Quero ser livre de escravos. Quero libertar-me, mas poesia não me basta; o lirismo não me redime mais que a cerveja; e viver bêbado tampouco me liberta. É tudo anestesia, coragem artificial, fuga momentânea da coerência para poder olhar um irmão nos olhos.

Me libertará o amor? O amor me inspira e me dá coragem, mas começo a achar que só existe amor verdadeiro onde existem problemas, ou melhor, que só percebo o amor quando percebo os problemas dos outros. Acho que o eu quero mesmo é poder olhar nos olhos.

Nada de anormal no espelho, se aquele era mesmo eu”. (
O opositor, Luís Fernando Veríssimo)

Levanto o rosto e me procuro no operário, no cortador de cana, no menino de rua, no cobrador de ônibus, no alcoólatra, no mendigo. Enxergo apenas meu vulto, uma imagem de mim que ainda não se encontrou com suas próprias ações. Que espelho cruel que é alguém sem a sorte que eu tive: se nele não me vejo, que sou eu? Eu quero me humanizar.

De que me vale a coerência dos que trocam de espelhos? Eu quero é poder olhar o homem nos olhos. Qualquer homem. Quero problemas que não sejam meus. Mas meu coração ainda faz contas. E eu tenho medo.


*Texto-desafio proposto por Thiago.

1 palpites:

Gostou muito das suas cronicas... sempre venho aqui para lê-las, mas hoje foi diferente. Não esse movimento de vir até aqui ler o que você escreveu, mas o que encontrei. Hoje foi mais poesia.
A leitura foi mais seca.
Foi impossível não me olhar.
O coração palpita rapido.
A noite vem rápida, e nos engole!

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