VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

domingo, 15 de abril de 2012

O ladrão de nariz

. . Por Unknown, com 3 comentários

Gordo, ele era gordo, não era imenso, não era um pouco, mas era gordo como se é, gordo. Gordo de calvície gorda, de cara gorda, de pescoço gordo, de bigode escasso e... gordo. Gordo de nome, como era conhecido, “o Gordo”. Gordo de mãos gordas, dos pés gordos nos sapatos da sapataria do Gordo que então levava nos fundos da casa dele. A sapataria antes ficava a alguns quilômetros e ele ia com um fusca, um carro adequado para a sua estatura, e mais adequado ainda porque é um carro, como se percebe, gordo. Mas o trabalho, que como qualquer outro sempre foi, e sempre será, um passatempo, perdeu a aura de obrigação, era mais do que nunca só uma forma de ocupar as mãos e a cabeça naquela época, depois que o mais novo dos filhos, já com emprego fixo, casara-se. O Gordo se aposentou.

A formalidade talvez o levasse a se apresentar como Otávio, mas a derivação que logo se seguia era pouco óbvia, ainda que os ós no nome, de saída e término, já dissessem o que se via, era gordo. Seu Otávio também não era muito a cara dele, que para a maioria da família, talvez por ser pequeno na altura, como deixava claro mais uma vez o automóvel, ficou como o-Tavinho. Já para os mais próximos, nada mais apropriado que a derivação do Gordo, o Gordinho, o-Gordim. Com os filhos sempre fora bastante sério e responsável, com a mulher, às vezes, até duro: um mistério, porque, a despeito destes, ninguém o levava a sério, talvez nem ele mesmo.

Me lembro de sua voz, meio rouca, dizendo “Ô, véia, traz a menina pra eu ver”. Minha irmã tinha poucos meses e ficávamos na casa d'O Gordo quando minha mãe precisava ir ao centro da cidade. Naqueles meses ele não saía do quarto, só ficava na cama, diziam que a perna não estava boa.

O-Gordim era um ladrão e minha mãe, ingênua, não suspeitava. Não sei, não há relatos ou qualquer indício de que isso fosse uma prática recorrente antes. De todo modo, senti na pele os furtos dos quais ele era capaz, antes dessa época que ele ficava no quarto. Me chamava, com a mesma rouquidão, “Ô, menino, vem cá!”. Sentado naquela poltrona toda acolchoada, de ferro, mas cujos braços eram de madeira, debaixo da janela da cozinha. Até hoje, ao me lembrar, vem aquela sensação pegajosa, o Gordo costumava bagunçar o cabelo da gente, cutucar as orelhas, pentelhar, ele dominava como ninguém a arte de pentelhar. Quando eu me aproximava, ele me segurava com uma das mãos, dobrava os dedos da outra formando um “dois”, como um V, e me levava o nariz. No instante seguinte, sua mão voava em direção à janela e eu ouvia, tentando me desvencilhar, que o meu nariz estava no galinheiro do terreno nos fundos da casa. “Mentira, mentira, mentira: tá aqui ó!!”, eu dizia, enquanto mostrava-lhe que entre os meus olhos nada mudara. “Ouve só, vai lá ver então, no galinheiro, a festa que tá com esse seu nariz aí, mané”; “Não to ouvindo nada... aí ó”; “Vai lá perto então”. 

A porta dos fundos que dava acesso ao galinheiro não se fechava, emperrava-se, e com um pouco de jeito, coisa que alguém de cinco anos tem de sobra, era aberta aos solavancos e puxões suaves, abrindo com um rangido interminável. Sim, dava certo cala frio abrir aquela porta e ver o alvoroço das aves atrás da tela, enquanto imaginava meu nariz sendo alvo da algazarra. Não era possível, “aqui ó”, eu repetia, com a mão no rosto. 

Só com a mulher do Gordo se podia conversar de igual para igual: “Ô vó, o meu nariz tá no galinheiro?!”; “Ah, menino, deixe de dar confiança pra esse velho!”. Eu voltava para a cozinha disposto a resolver aquilo tudo de uma vez! “Pow, pow, pow!", mas era atingido por almofadas e mais almofadas, e uma batalha, uma guerra se iniciava! Atrás da mesa, nada me servia de armamento, tinha que desviar dos ataques, esperar, pegar as almofadas e contra-atacar. Tudo isso se repetiu umas quatrocentas e setenta e quatro mil vezes.

Naquela cozinha, durante aqueles anos e muito tempo depois, entre a porta que dava acesso ao quintal e aquela para a sala, estava o Morumbi, o Maracanã, ou apenas o Santa Cruz. Talvez o Gordo preferisse o Palma Travassos. Naqueles anos, também, já estava anunciado, nem eu, ou qualquer outro primo seria engenheiro, ou arquiteto, não passaríamos das construções de Lego. Era a vó mesma quem fazia as bolas de meia, porém, qualquer tampa de plástico ou algo que deslizasse o piso branco manchado de marrom era suficiente para fazer cadeiras, janelas, persianas, mesa, porta e armário tremerem feito traves e arquibancadas. Muitos craques desfilaram ali. Neymar ficaria com inveja.

O Gordo não viu. Imagino que aqueles homens vestidos de branco que o levaram do quarto um dia, quem sabe, tivessem razão. Um ladrão não poderia ficar assim, à solta. Minha mãe me veio com uma conversa dias depois, dizendo que eu ia ficar em casa com uma prima muito alta durante aquela noite. O galinheiro depois disso sumiu. Ficou o pomar no quintal. O-Gordim, bandido, na certa deve ter levado tudo ao fugir. Mas ele perdeu a guerra, mané, e eu ainda tenho meu nariz.

A poltrona pelo menos ficou, foi para a sala. De lá, via-se também as janelas dos quartos, e o mundo sim era muito grande lá fora.

domingo, 8 de abril de 2012

Folha em Branco

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

A folha em branco é desafiadora. A vontade de escrever parece latente, quase um litro de café já se foi, e a casa está harmoniosa... Tudo perfeito... Mas onde diabos está aquilo que devia estar no papel?

A folha sobre a mesa. Eu olhando pra ela enquanto giro o lápis pelos dedos. E nada. Uma consulta pode ser um bom caminho: bloquinhos de anotações, jornais, livros, wikipedia, filmes, aforismos, algo inspirador... Mesmo assim, mais vazia que a folha parece minha cabeça, que teima em não ter ideias. Quando enfim parece estar surgindo, o barulho da geladeira, ou uma simples formiga que trafega sobre a folha parecem suficientes para repelir qualquer indício de inspiração.

Olho pra folha em branco e me sinto herege. Tantas pessoas morreram por aí para que eu tivesse direito a esse momento, de escrever sem medo de ser preso. De publicar algo sem justificativa e revisão de superiores. E eu aqui, entre titubeios e distrações. Vai ver essa folha em branco é mesmo como a democracia, onde se é livre, mas não se sabe bem o que fazer com aquilo.

O primeiro parágrafo é o mais difícil, mas sem ele nada acontece. Algumas vezes custa a sair, mas quando é parido, o texto todo engrena com relativa fluência. Em outras, no entanto, ele até aparece rápido, mas mais pra frente fica fácil perceber que ele influenciou tudo o que veio depois a ser ruim como ele.

O melhor então é aproveitar o fio da mínima meada e ir escrevendo tudo, quase um fluxo de consciência, sem se importar com erros gramaticais ou palavras repetidas. Depois teremos tempo para isso. E só assim, conseguimos descobrir que o fio, antes pequeno, pode estar ocultando um novelo de ideias. Como é bom destrinchar esse novelo, ainda que desordenadamente. E pouco a pouco surge um texto em crochê.

Agora sim, é hora de maquiá-lo. Algumas correções cá ou lá. “Será que esse acento está de acordo com a nova regra ortográfica?” Mudar parágrafos de lugar também é mais corriqueiro do que se imagina. “Esse segundo parágrafo podia ser o quarto, também preciso extrair uma parte do terceiro parágrafo para fazer um enxerto no quinto”. Outra parte importante é trocar palavras que entravam a fruição, dar alguma poética ou pelo menos tornar a leitura mais agradável. “Hum... ‘É hora de ir’ fica melhor do que ‘vou-me já’, certamente”. Só mais alguns detalhes e... Pronto, lapidado!

Depois do fluxo de ideias e da maquiagem, é impossível publicá-lo sem mais uma revisão minuciosa de conteúdo. Dar uma olhada no argumento, conferir se as ideias têm nexo e se aquilo realmente expressa minimamente o que você acredita. Parece simples, mas é tão difícil como o começo, sempre tem um senão pra incomodar. “Será que se meu chefe ler ele vai brigar comigo?”, “Será que o Drummond salvaria alguma frase daqui?”, “Será que eu posso dizer ‘tribos’ ou soa evolucionista?”, “Será que está claro que foi uma ironia?”, “Será que vou me envergonhar quando ler isso aqui, daqui um ano?”. O drama é tão grande que João Cabral mesmo dizia que, depois de escrito, gostava de deixar um poema na gaveta por meses, para lê-lo de novo e só então decidir se queria mesmo ser autor daquilo. Em tempos de blog, fica difícil.

Mas enfim, a folha está preenchida, e até o corpo parece aliviado por colocar pra fora aquilo tudo. Há poetas que dizem que a poesia de algum modo já existe em algum lugar, e cabe ao escritor apenas encontrar a combinação de palavras que estão escondidas. Uma teoria um tanto quanto espiritualista, é verdade. Mas, de fato, na hora de escrever tem algo que deve sair, que precisa ser escrito. Fazer da fagulha um incêndio. Não fosse essa sensação, seria fácil desistir na primeira formiga, no primeiro barulho.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Para alguém que acredita em um mundo diferente

. . Por Thiago Aoki, com 1 commentário

Ser adulto tem dessas. A vida, ávida por resposta, pergunta, cem vezes ao dia, onde vamos. A resposta, sempre tão clara ou que nunca se fez necessária aparecer, agora se esconde por entre a paz do caixa eletrônico e a audácia do tempo.

Sinto, metafisicamente, que todos que algum dia militamos ou acreditamos na possibilidade de um mundo diferente, estamos imersos em uma crise. Não é uma crise financeira, moral, ou política. Trata-se de uma crise de ideias. Ainda não preenchemos a lacuna deixada pelo muro de Berlin e os gritos esparsos de poucos acabam dissolvidos no vento. Quando finalmente tem-se muitos de voz grossa a gritarem juntos, não se sabe pelo que se grita. Sabe-se apenas contra o que se grita. E que gritar é preciso.

E neste instante, quando as respostas teimam em se ocultar, o mundo parece uma difícil dicotomia entre a dignidade e a conveniência, que brigam entre si dentro de cada um de nós.

Kafka, em um personagem preso sem motivo aparente, mostrou como parecemos imbecis quando buscamos o avesso das regras do mundo, por mais que saibamos da opressão que sofremos. Parece ainda mais tola uma contestação em plena liberdade democrática. É também dele uma frase que diz muito sobre nossa sinuca de ideias: “o verdadeiro caminho passa por uma corda que não está esticada no alto, mas logo acima do chão. Parece mais destinada a fazer tropeçar do que a ser percorrida”. Albert Nobbs, que está nos cinemas, estava tranquilo e conformado com uma vida de humilhação onde não podia ser ele(a) mesmo(a), até que despertou sua teimosa vontade de se libertar.

Optar entre ser como o leão que mata o leopardo para que seus filhotes não sejam atacados ou como a hiena, que sorri por não ser ela a vítima da vez. Machado de Assis expôs todo esse dilema em Prudêncio, um escravo que, logo após conseguir a alforria, tem como primeiro ato de liberdade a compra de um escravo para si. Tornar-se senhor de si mesmo não bastava, precisava ser senhor dos outros.

A resposta pra tantas indagações não são encontradas em livros. Nem pensadores, nem romancistas. Nossa geração acabou sendo, pra bem ou pra mal, a geração da bricolagem, onde misturamos Kafka com Fellini, Marx e Buñuel, batemos tudo no mesmo liquidificador e tentamos criar algo novo. Mas para além da bricolagem teórica, é a vez da bricolagem prática.

Os mesmos megafones não vão conseguir resolver. As mesmas seis mil pessoas desnorteadas ao ouvir o megafone também não serão suficientes. A bricolagem prática está mais próxima da ação direta, das Zonas Autônomas de Hakim Bey, da guerrilha urbana de Banksy, do teatro de rua paulistano, das prostitutas espanholas, da revista Miséria, das novas ocupações. Mais do que palavras de ordem, e busca de teorias, são as práticas de cada dia, em cada microcosmo, em cada escolha pela dignidade, que vão levar ao fim da crise de ideias. Parece uma teoria empresarial, mas quando nenhum procedimento está consolidado, só mesmo a tentativa e o erro para construí-lo. Neste caso, a incoerência é uma virtude. Não temos padrões de condutas pré estabelecidos, mas não façamos disso um limite, pelo contrário.

Ou, em mais uma bricolagem, agora com John Lennon, “a vida é aquilo que acontece enquanto você está planejando o futuro”.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Cartas - O país mais caro do Brasil

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários

Arthur,

Que saudade, carinha. Uma pena que não nos encontramos no começo deste ano, mas, ao mesmo tempo, agora vejo que talvez tenha sido melhor assim, pois, quando você voltar, espero que tenhamos mais a conversar sorrindo que se lamentar, no meu caso. Calma, digo isso mais para fazer um belo e mesquinho drama do que de fato para apontar qualquer catástrofe. Minha mudança para o país mais caro do Brasil acabou atrapalhada, pra variar, cheia de emoção - risos. Dizem que a cidade de São Paulo não dorme, e acho perfeitamente possível viver de insônia - me perdoe o trocadilho infame -, mas custava ficar quietinha cinco minutos por dia?! Pode até não dormir, é só fazer silêncio um pouquinho que seja! Néca. Me mudei para a Rua da Consolação no começo de janeiro. Não importava a hora em que fosse me deitar, tampouco aquela em que me levantava, a sensação de ter uma construção, uma obra, uma reforma, uma verdadeira sinfonia de britadeiras, buzinas e quebra-quebra não me abandonava. Coisas de um jeca na capitar, eu sei, mas enfim, passou, não estou mais lá.

Tive que me mudar. Por sorte, ou não, um dos meninos que morava ali comigo, um dia me disse que, com a renovação do contrato do apê, precisávamos ir à imobiliária, há menos de uma quadra, e incluir nossos nomes, de um outro menino e o meu, no contrato. Cheirava mal a história, digo isso agora, é verdade. Ele havia me falado em dezembro do reajuste no aluguel que, até aí, é normal, acontece todo ano. Mas trocar os nomes numa renovação de contrato, diria vovó, cheirava a chifre queimado. Não me pergunte como é esse cheiro, não sei, mas que cheirou, cheirou depois.

A senhora que nos atendeu, não se levantou da cadeira para cumprimentar os três marmanjos que chegaram, mal acenou com a cabeça um "olá". Ela parecia estar há séculos atrás daquela mesa fumando e tomando cafés, deixando escapar gotas de saliva entre uma palavra e outra, cheia de olheiras. Por alguns instantes, pensei que nunca mais fosse conseguir colocar uma xícara de café na boca novamente. Atrás daquela mesa, ela parecia também controlar tudo que a mantinha viva, resignando-se ao computador, a uma linha telefônica e à cadeira móvel e giratória. Já o café e as bolachinhas da pequena mesa justaposta ao lado chegavam através de uma ordem qualquer, imagino. Se fosse exagerar mais, bancando o blasé de vez, diria que ela parecia ter saído de uma novela do Kafka, mas talvez seja mais parecida com um daqueles personagens de "O Guia do Mochileiro das Galáxias", o filme. Raivosa, mal educada, grosseira, estúpida, ela basicamente não nos ouviu, foi falando, dizendo que o Mercado – eu só conseguia imaginar um senhor distinto, garboso – mostrava como estavam as coisas, que poderíamos conferir com o Mercado como estavam os imóveis na região e na cidade, afinal, o novo contrato com um "reajuste" de 100% no valor do aluguel não era absurdo. Oi?!

Falei de Kafka, ou d'O Guia do Mochileiro das Galáxias, não. Faz muito tempo, li aquele "Memórias do Subsolo", do Dostoiévski – dizem, ele gostava de flamingos –, o narrador-personagem daquela história sim me parecia a mulher da imobiliária. Já nos primeiros parágrafos vemos isso: “Faz muito tempo que vivo assim – uns vinte anos. Agora estou com quarenta. Antes eu trabalhava no serviço público, mas agora não trabalho mais. Fui um funcionário cruel. Era grosseiro e encontrava prazer nisso. (…) Quando os solicitantes se aproximavam da minha mesa para pedir uma informação, eu rangia os dentes para eles e sentia um prazer infinito quando conseguia contrariar alguém. Quase sempre conseguia. (…)”. Se não conhece esse livro, Cão, não estrago mais nada, porque é uma leitura... marcante... vale a desestabilização em que nos deixa.

Depois daquela senhora se negar a nos passar o contato do proprietário, o que é normal, já que uma imobiliária faz a intermediação, né, conseguimos falar com o sujeito e ele ficou de falar com ela, vendo uma nova proposta. Nada aconteceu e, no fim, depois de uns dez dias, ele pediu o apartamento pelo telefone, conversando comigo. Paciência. A voz dele era muito agradável, me parecia um vovô tão gente boa, tão dahora, que desliguei o telefone sorrindo. Foi um amor, só gentileza. Sério, eu me queixava da má educação da mulher, dizendo que por isso entrávamos em contato com ele, e, com toda calma do mundo, ele, “por favor, Sr. Hugo, não se importe com isso, essas coisas são pequenas demais, a verdade é que eu quero o apartamento, quero reformá-lo e, quem sabe, me mudar pra essa região”. A verdade é que eu nem quero saber a verdade depois disso, porque ser tratado educadamente faz diferença...

Mas reparei, outro dia, que algo me ficou marcado daquele apartamento, além dessas coisas chatas. Gostava da visão que dele se podia ter. Na sala e na cozinha, as janelas miravam a Rua da Consolação em sua parte mais baixa. Era possível ver um canto da parte superior, talvez a torre, da Igreja que dá nome à rua, e também os edifícios Itália e um pedaço do Copan, entre tantas outras construções. A fragmentação, a distância e mesmo as cores, verdes perdidos, compunham uma paisagem muito bonita. Naquelas semanas que fiquei ali, choveu demais, quase todos os dias, e, de alguma forma, era divertido encostar na janela da sala tentando adivinhar o que se fazia no prédio vizinho, atrás dos vidros negros do Tribunal Regional do Trabalho, e então assistir à formação das nuvens, o escurecimento do céu e mesmo o desaparecimento dos edifícios numa tempestade. Da cozinha, ainda, ficava a imagem, um quadro, um mural bem grande na lateral de um colégio, em que um padre, de pé, mostrava a duas crianças indígenas a palavra dita sagrada. Durante os primeiros dias eu até quis pensar alguma traquinagem com aquele mural, falo de puro vandalismo mesmo, porém, junto à falta de criatividade, batia o medo de ser identificado e pego, a vergonha por não respeitar a crença que a imagem de alguma forma representa, e, claro, uma preguiça enorme.

Bom, no mais, por aqui acho que as coisas mais relevantes foram a ação conjunta dos governos municipal e estadual, via polícia militar, no centro da cidade, lá na “Cracolândia”. Um horror. Sem contar que dias depois veio o desfecho(?) do Pinheirinho, em São José dos Campos. Um horror enorme. Dia desses mais uma morte besta de uma ciclista aqui perto, na Paulista. Não há ciclovia nesta que é a avenida economicamente mais importante da cidade, acho que do país. Oi?! Foi assustador pra mim, cruzando aquele lugar quase todos os dias. Mas não sei o que é mais assustador, se nos colocarmos no lugar daquela moça, ou se assistir à indiferença e inércia que se segue depois disso, para a Cracolândia, para o Pinheirinho, para a maluquice da vida que se leva por aqui, ao redor... Nacionalmente, o assunto parece que é a Copa, se se vende bebida alcoólica ou não. Esquecemos Belo Monte, o novo código florestal...

[Poxa, quanto lamento...] Devo confessar, Cão, mesmo já tendo me mudado muitas vezes, dividido casas, repúblicas e apês com pessoas muito diferentes e em lugares também diversificados, nunca uma adaptação pra mim foi tão complicada. São Paulo é excessiva. É a única forma que encontro pra falar algo em poucas palavras.

E quem tem batido um bolão é o Romário, na Câmara. O teu Palmeiras, quem diria, era líder no Paulista, ensacou o meu querido Botinha em Ribeirão um tempo atrás - doeu, viu (risos) -, mas vacilou, perdeu pro Curínthia e ficou pra trás.

Ah, vi um filme mês passado que me lembrou de você por vários motivos, "Les Noms des Gens". E, por favor, se puder, arranje um fim de semana qualquer e corra até Granada durante a primavera, visitar Alhambra e passear por aquela cidade nessa estação deve ser incrível!

Abração,
Hugo
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O que é isso?! Pra quê?! Por quê?!
Cansados de twitter, facebook, MSN, skype e e-mails, achamos - o verbo é esse mesmo, incerto - que seria legal copiar a ideia do blog do Instituto Moreira Salles, na seção correspondência. Ideia retrô?! "Poser"?! Fitinha?! Que só quer aparecer?! Ah, é claro, do contrário nem blog faríamos. E como espaço de conversa informal, muitas vezes, de ideias soltas, vagas, nada melhor do que se aproveitar do formato carta, correspondência, para falar com amigos distantes. Pretexto. Assim, também, paramos, pensamos em nossas vidas, no que está acontecendo ao nosso redor, e tentamos nos comunicar sem a velocidade, a urgência do instantâneo que uma mensagem via celular, uma chamada no skype, uma publicação no mural de uma rede social, ou mesmo um e-mail apressado fazem, mas apenas conectamos nossas vidas ao tempo delas mesmas, longe dos salões aristocráticos, das conversas programadas de corredor. Ou não, esperemos para ver até onde isso vai.

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