A partir de hoje tudo será diferente. Certeza. Que dia lindo pra que tudo comece bem. Ontem já achava que as coisas continuavam na mesma merda, mas que nada, com esse emprego dando certo hoje tudo vai ser novo. “Vamos, Hugo, levante, não fique moscando na cama enquanto o dia passa, como sempre, se apronte e pegue o ônibus já que é tão importante...”. Um banho e um café rápidos porque são dois ônibus. “Tudo será diferente, sei, com uma grana boa no final do mês, que te importa se serão seis dias puxados de trampo por semana, né, velho?”. É, tudo vai dar certo, com um trampo, vou me organizar melhor, separar tudo direitinho, ter tempo pra cada uma das coisas que gostaria, não ficaria a maior parte do tempo perdido, procurando algo pra fazer, ou pensando na morte da bezerra, esperando que “algo novo aconteça na vida”, caindo do céu, poderei fazer várias coisas. Vai me fazer bem, dará um “up” na minha vida, serei mais “eu”. Até a mocinha que eu dou em cima me dará atenção, verá que não sou apenas mais um idiota no mundo, como outro qualquer, irá me valorizar. Prestará atenção nas minhas indiretas diretas, achará isso uma graça e não me quererá somente bem, me quererá bem e com ela.
- Atchim, atchim, atchim!!!
Opa, que é isso? “Ah, nada, vai, só aquelas frescuras suas com alergia, mudança de temperatura, daqui a pouco você esquece, vamos! Hoje eu quero ver!” Demora esse ônibus pra chegar, não? Quantas voltas, pegá-lo todos os dias não seria cansativo? “Hugo, que bosta, você só reclama, deveria ver pelo lado positivo, aproveitar pra ler alguma coisa no caminho, ou ouvir uma boa música, o que você deveria estar fazendo já agora!” Tenho que descer, e só faltam vinte minutos para o início do processo seletivo, preciso passar no banheiro, meu nariz está escorrendo.
- Atchim, atchim, atchim! Por favor, onde será a seleção?
- No piso superior, no auditório à esquerda.
- Obrigado.
Dois punhados de papel higiênico enrolados em cada um dos bolsos totalizam oito. Acho que serão suficientes. Um, dois, três, quatro, oito, comigo são doze. Doze num processo seletivo. Serão quantas vagas? “Hugo, imbecil, não importa, concentre-se! Não queira aparecer mais que os outros, e não fique muito discreto também, lembres-se!”
- Bom dia! (...) Bom dia, pessoal?!
(um bom dia coletivo em resposta aparece)
- Nossa, mas que “bom dia” mais preguiçoso, gente, um pouco mais de ânimo, vamos!
Como assim, é a gravação do programa do Gugu numa quarta-feira de manhã? “Hugo, BOM DIA!”
- Atchim, atchim, atchim!
- Bom, gostaria de começar lembrando que o mais importante para a empresa é o trabalho em grupo, coletivo, em que cada um tem a sua função e todos fazendo a sua parte constroem tudo o que hoje nós podemos presenciar neste instante.
Filosofia das abelhas, sei, conta outra. Como chama aquele nêgo lá, amiguinho do Ford, Taylor? O maluco das funções do trabalho... Essa é mais velha que a piada do paraguaio, hein, moça da voz-do-além?! Meu nariz está escorrendo muito, neste ritmo não agüento todo o tempo com somente estes papeizinhos. Mas, que voz é essa, moça? Com esse veludo insuportável de radialista de velório seria o remédio perfeito para minha crônica insônia, dormiria o sono mais profundo que qualquer bebê. Eu deveria ter trazido um gravador... “Presta atenção nas apresentações!”.
Ah, seu pai mora nos EUA, e o que isso diz de você, mané?
Ah, seu pai faleceu faz dois anos, sinto muito, senhora.
São tantas obras de arte que te definem, sério, puxa, você é quase uma "metamorfose ambulante", a lá Raul Seixas, humm, só faltava gostar de Paulo Coelho, o amiguinho dele também, né, benzinho?!
Ah, que interessante, seu pai pediu pra você fazer faculdade antes de fazer História, com certeza deve ser um homem de sucesso então, meu rapaz.
- Atchim, atchim, atchim! Me chamo Hugo, tenho 23 anos, sou formado em Ciências Sociais. Atchim, atchim, atchim! (...) (...) (...) Atchim! (...)
“Não deveria ter falado aquilo, foi excessivo, se achou, babaca, poderia ter enfatizado aquele outro negócio, seria melhor!” Estão acabando os papeizinhos.
- Atchim, atchim, atchim.
- Agora é hora de um pequeno intervalinho, pessoal. Podem sair, comer alguma coisa e em quinze minutinhos a gente já está de volta.
Obrigado, moça da voz Tsé-Tsé. Agora posso recarregar-me de papeizinhos. Beber e comer algo. Comida árabe quase, não? Não é Kebab, mas um kibe e uma esfirra estão quase lá.
- Dá licença, por favor, posso sentar aqui?
- Claro, fique a vontade. Cara, estava aqui pensando, né? Você, com um puta currículo tendo que se sujeitar a trabalhar de vendedor no shopping?
- Que isso, mano? Tá loko? Não tenho “puta currículo” nada, cê deve tá impressionado só porque fiz Universidade “Pública”, raridade no nosso país, é verdade, mas isso não quer dizer porra nenhuma. E não é “me sujeitar” não, mano, o trampo de vendedor no shopping dá uma puta grana legal, mano. Puta troço que muita gente daria mó corre pra estar aqui hoje, ser chamado pra disputar essa vaga com a gente! Não viaja, mano.
Putaquepariu, que kibe horrível, deveria ter pedido uma coxinha ao invés disso. Toma sua Coca-Light aí, vai, doido! Pô, fazendo a segunda facul, já formado em publicidade, marketing, e agora na psico, e ainda vem me dizer do meu “puta currículo”. Psicologia reversa, só pode, quer me derrubar, certeza. O ar condicionado está ligado, e bem ligado, então por que raios sinto calor, por que meu rosto está ardendo se não estou “envergonhado”? “Febre, Hugo, é febre, não seja idiota, mas esqueça, se concentre para a parte coletiva agora da dinâmica!”.
- Atchim, atchim, atchim.
- Não, porque tem que ser assim, a gente diz isso, faz aquilo e boa, tá ligado, mano? É isso, eu sei, já trampei no shopping! Eu sei, é assim!
- Atchim, então, acho que seria melhor se pensássemos de outro modo, se perguntássemos antes de agirmos diretamente, é melhor pensar nas possibilidades de reação diante de determinadas situações. Não sei, imagino, deve ser melhor que já termos uma postura pré-determinada... eu acho...
- Hum, pode ser. Pode crer, mano. Pode crer! É melhor mêmo!
Ué, mas você não “já sabia”, bonzão? Droga, deveria ter feito aquilo, dito outra coisa, não deveria ter feito isso. “É, Hugo, como diria o saudoso Bezerra da Silva: malandro é malandro, mané é mané. Nem preciso repetir que seu espírito teima no último time, né?!” Ah, tá bom, tá bom, chega, se sabe e entende tanto de mim, por que não age diferentemente? Por que não transforma essa merda toda que vê e acompanha diariamente? “É muito mais divertido assistir à desgraça, meu caro.” Não se esqueça que ela é sua também, esperto. “Não, não, ela é inteiramente sua, inteiramente, a-ha-ha-hahaha!”. Humpf...
- Bom gente, hoje foi apenas isso – aquela voz incrivelmente insuportável, mediana, pausada, sem uma alteração facial, parecia um cadáver falando, que horror. Agora vocês devem aguardar o nosso contato dizendo se foram aprovados ou não para a próxima fase. Obrigado, espero que tenham todos um ótimo dia.
- Atchim... tchau...
É, ainda tenho que pegar o mesmo ônibus de volta... pra nada... “Como é mesmo, Hugo, malandro é malandro e mané é...?” Vai se fudê! O dia ainda não acabou, pode ser que eu tenha passado pra próxima fase. “HA!” Peraê, meu telefone está tocando, dever ser ela, nossa, ela tem mesmo meu telefone, e está até me ligando, é um sonho? “O-ho, pode ser um pesadelo também... i-hi-hi!” Cala a boca, por favor.
- Alô?
- Alô. Oi! E aí, tudo bem?
- Oiii! Tudo, e você?! – não acredito!
- Beleza! Escuta, dá pra gente ser ver ainda nesta semana, né?!
- Nesta semana... claro, claro! Dá, dá! – não acredito!
- Massa, então passa amanhã no supermercado em frente antes de vir, não esquece o andar, hein, porque o interfone está quebrado ainda, Marquinhos!
- Que supermercado em frente, abriu um quando, onde, como assim? Andar, você se mudou? Onde você está? Ahn, Marquinhos? Mocinha?
- Mocinha? Não, quem está falando?
- Hugo...
- Ai, mano, nada a ver, foi engano...
A voz parecia, pelo menos... “Hugo, ai, aha-aha-ahahaha, ai, ahahah-aha-ahahaha, ai ai, não consigo parar, como assim parecida, endoideceu? Deve ser a febre, está delirando agora: já pra Farmácia!” Tudo bem, que bosta, viajei... Acho que um resfenol resolve, ou alguns... Como chama aquele cara lá que ouvi uma vez, diziam ser importante pra aprender a conseguir um emprego, se organizar, obter sucesso e tal? “Ai, nossa, Roberto... alguma coisa “Sempre-chique”, mas troque as letras por um nome oriental e reproduza o som, pronto, vai encontrar o segredo de tudo aquilo que você não é, ou tem! Hi-hi, mas cadê o moço meio-intelectual, nãnãnã? Vai ler Dostoievski?!” Qual é, e o que esse russo inútil te (ou me) trouxe até hoje? Uma voz chata na própria cabeça que fica bancando o senhor sabichão, cheio de ironia e sarcasmo?! Grande bosta! “Ui, ele ficou nervoso agora. Calma, vai ler Guimarães Rosa então, vai, se tranqüilize. Não é dele a sua paixão, querido?!” Ok, ok, ok: vai tomá no seu cú!
Reza a lenda que Borges adorava dizer que na língua espanhola os verbos “inventar” e “descobrir” teriam origens semelhantes, como se pudessem ser intercambiados, como sinônimos. Muito bonito, mas quem foi o filhodaputa que inventou, ou descobriu, a porra da dinâmica de grupo?