Anos mais tarde, depois de Dostoiévski, e quase contemporaneamente a Niezstche, aparecia na outra ponta do continente europeu um sujeito que muito contribuiria ao dito universo, melhor dizendo, só traria caótica maior: Fernando Pessoa. Fernando Pessoa? É. Tudo bem, mas quem? Ele mesmo? Alberto Caeiro? Ricardo Reis? Bernardo Soares? Álvaro de Campos? E sabe lá Deus quantos mais heterônimos, personalidades, traços, orientações e biografias o maluco inventou. Pois bem, se com Nietzche, veja bem, não é um qualquer, Zé Povinho, não, é o tchan tchan tchan... é o Niezstche, a coisa já ficou complicada, agora imagina um carinha fraco das ideias feito o... o Pessoa... Imagina o Fernando Pessoa no divã. Essa eu queria ver, Yalom. Ele não era único, ou diverso, ou desafiador, era simplesmente múltiplo, podia ser muitos, muitos. Não se interessava apenas pela alteridade (a antropologia adora essa palavra), ele sim tornava-se Outro.
Parece que muito tempo depois, em um contexto completamente diferente, Eduardo Viveiros de Casto pode ter encontrado algo parecido quando dá outro sentido a sociedade Tupinambá em "O Mármore e a Murta", de A Inconstâcia da Alma Selvagem. Pois o antropofagia ritual daquela sociedade seria símbolo da abertura para o Outro, a outra sociedade com a qual se relacionavam, do desejo por "ser" o Outro, já que os Tupinambás poderiam desconhecer a noção de identidade personal tal como a nossa (com o perdão devido pelo jargão utilizado) sociedade moderna, de origem judaico-cristã, teria constituído. Tudo bem, desconhecer a noção de identidade tal como o ocidente a conhece não significa que pudessem ser pluri, ou múltiplos, de qualquer forma, quem sabe, diga que poderiam forjar um "novo ser" diante daquilo que o Outro (a sociedade literalmente comida, em vingança) lhe apresentasse. Em resumo, parece que os Tupinambás, que absurdo, tal como Fernando Pessoa, por caminhos tão, tão distantes, também se tornavam Outro.
Já Enrique Vila-Matas, escritor catalão, em O Mal de Montano, cria a história de um romancista, narrador-personagem, em crise com a própria escrita, ou melhor, que está doente de literatura, enfermidade, por sua vez, que dá título ao livro. Na obra, a personagem sofre por enxergar o mundo, ele próprio e as pessoas com quem convive e que atravessam o cotidiano dele, por meio de comparações com obras, trechos, frases, poemas, escritores, enfim, com a literatura que o mesmo narrador conhece. E, no meio da trama, o filho do narrador, e que também escrevia, passa pela mesma moléstia. Assim se desenrola a história do romance, entre reflexões sobre a condição da literatura e suas possibilidades no mundo em que vivemos, ao mesmo tempo em que somos brindados por referências belas e sutis de autores como Borges, por exemplo, para quem a escrita, além do sentido autoral que possa ter, era também uma forma de diálogo com outras obras. Mais, o que se destaca são as comparações, as referências dos acontecimentos da trama e da posição das personagens, ademais da condição delas no interior da obra, situadas que são com outras histórias, outras ficções, romances. É como se uma história pudesse ser lida não somente pela conexão dos elementos que a constitui, mas por outra muito distante no imaginário da literatura, o que faz com que aquilo que pareça óbvio, normal, inevitável e natural, se abra ricamente em significados, em possibilidades. A obra de Vila-Matas não deixa de ser provocativa, no sentido de que constitui também uma crítica ao nosso mundo tão desencantado, de necessária coerência aos nossos preconceitos, lógicas e quadradinhos fechados de racionalização. Ela é um discreto brilho de surpresa poética, mesmo que não nos reserve uma experiência sensacional de leitura.
Uma passagem de Vila-Matas que pode dar alguma coerência, se é que é possível, à minha preguiça em escrever este presente texto hoje, é a referência do narrador a mãe dele: "Se Geoges Bataille dizia que escrevia para não ficar louco, de minha mãe se poderia dizer que, sendo pessoa sensata na vida real, ficava louca quando escrevia"(p.129).