Minha rotina? Vez ou outra acendo meu cachimbo, sentado aqui na varanda, olhando pro nada enquanto nada acontece. Que nem domingo de cidade do interior, sabe? Acendo o cachimbo, olho pro nada e a paz vem, ô se vem... Vem dançando miudinho, miudinho, me envolvendo todo e eu nem sei o que fazer com isso, fico aqui, encostado vendo nada acontecer, sem reação. Acho que porque os homens da minha idade nunca aprenderam, durante a vida, a serem conduzidos na dança. Mas quando acendo meu cachimbo, dou o primeiro trago, entregue à cadeira, penso como é bom ser conduzido, e como perdi tempo querendo estar sempre no comando. Você é novo, moço, experimenta parar e olhar pro nada de vez em quando, muitas coisas acontecem enquanto nada acontece, sabe?
Tenho não. Nem neto, nem neta... Também tenho não. Nem filho, nem filha... Tive já, mas é passado. Se morreu ou me deixou? Faz alguma diferença, seu moço? Sei só que eu to aqui, e na minha varanda tem só duas cadeiras: uma pra mim e essa outra que você tá sentado, que é pra caso algum compadre venha tomar um café... Se me sinto sozinho? Olha, só posso dizer que fazia tempo que essa cadeira aí não sentia o peso de alguém.
Tome, pegue aqui seu café, bebida santa. Ah, tá doce, esqueci de avisar. Meu estômago já não aceita o café tão amargo, tem que ter um bocado de açúcar pra adoçar. Meu pai falava que estômago é igual coração, muita amargura e ele para de funcionar... Fica tranquilo, seu moço, os dois meus tão bem, só com o desgaste natural do tempo, mas no fundo eu sei que é que nem carro usado, depois que dá problema resolve mais não, você sabe bem...
Quando não tenho companhia? Sei não. Aí converso com meu radinho, coloco ele nessa cadeira que você tá e fico ouvindo enquanto olho pro nada. Às vezes fecho os olhos enquanto escuto, gosto de imaginar a beleza de quem tá falando no rádio, se é moça bonita, se é rapaz bem aparentado. Sabe, meu radinho tem um chiadinho, mas eu gosto, me lembra um monte de coisa boa, sabe? Aquela época que tinha mais porteira que sinaleiro, a gente ouvia cada moda linda, cada saudade em forma de acorde. Eu gosto de ouvir as modas, eu achei uma rádio aqui que sempre toca umas modas bonitas. Fora essa, tem uma outra que só passa notícia. Mas esa eu ouço só às vezes, vou falar a verdade pra você, cada desgraça que não dá nem pra imaginar. Só por Deus, se bem que com tanta coisa ruim que acontece, às vezes dá pra achar que o Diabo tá no comando. Deus me livre, vira essa boca pra lá.
Quando ouço umas desgraças sem tamanho, fico com raiva, coço tão forte a palma da minha mão que ela fica toda avermelhada. Eu queria era saber qual foi o bicho que mordeu o homem. Deve de ter sido um bem venenoso, desses que quando ferroa não tem volta, ou vai ver que alguma onça com doença contagiosa abocanhou o primeiro que passou, espalhou essas pragas pelo mundo e agora tá assim, cheio de desgraça por aí... To calmo moço, to calmo. Mas bom mesmo era quando tinha novela no rádio.
Se bem que às vezes tem umas conversas que eu gosto nessa rádio de notícias que falei pra você. Outro dia mesmo tinha um doutor falando, agora não sei direito se era médico ou algum letrado. Só sei que era inteligente e disse uma coisa tão interessante que eu até guardei. Ele disse que achava muito engraçado o ser humano dizer que o avesso da "morte" é "vida", porque se fosse pra ser certo, o avesso da "morte" era pra ser "nascimento". E não é que faz sentido mesmo? Quando alguém nasce a gente enche a cara de sorriso e nem pensa que aquilo é o avesso da morte não é mesmo? Só de ter pegado um nenezinho no colo, eu já vi até coronel abrir sorriso sem saber o porquê. Essa mentira que a gente conta de dizer que a vida é o avesso da morte deve ser pra não lembrar que na verdade é o contrário: vida é o caminho que a gente faz pra chegar até ela. Seja eu aqui com meu cachimbo, olhando pro nada, dançando com a paz. Ou o moço aí, todo de branco fazendo esse tanto de pergunta. Mais café?
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