segunda-feira, 13 de maio de 2013

Coluna do Leitor - Ainda sobre cadeias e ladrões

. . Por Mistura Indigesta, com 1 commentário

Acabei de tomar boldo isprimido na água. Cê pega o boldo, amaça ele com uma colher de pau em três dedos d'água. Depois deixa uma hora na geladeira. Daí toma. Remedião bom contra essa ressaca.

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vida

nasce
estuda
estuda
estuda
estuda
trabalha
trabalha
trabalha
trabalha
trabalha
trabalha
trabalha
aposenta
e morre

Fiz esse “poema” há uns dois meses atrás. Declama-se bem devagar. Na primeira declamação que fiz minha amiga gargalhou. Na segunda, uma outra amiga não gostou muito não. “Nossa! Que visão triste das coisas...” Não. É só um jeito de enxergar um troço que eu tratei como deus durante muito tempo: o trabalho.

Minha família sempre ensinou que trabalhar era bonito. Comecei aos treze como panfletista. Entregar papel na rua, manja? E ófice bói. Eu gostava. Eu tinha a vida pela frente. Eu tinha muitos trabalhos ainda pra fazer. Muitos trabalhos bonitos. Tinha muito a crescer.

Tinha que crescer. Minha mãe era professora de educação infantil, tinha sido bancária. Eu ia ser algo assim. Fui criado pra isso. Esse seria o fim. O sonho. Imagina passar num concurso? Estabilidade. Salarinho todo mês. Nossa! Ia ser muito bom.

Da mesma forma que um filho de médico vai ser médico ou engenheiro ou juíz, um filho de gari pode ser gari ou ajudante de pedreiro ou mesmo pedreiro - ou até professor ou enfermeiro quem sabe? -, o filho de grande empresário vai continuar os negócios do pai assim como o filho do dono da mercearia pode cuidar também da budega, eu ia me encaixar dentro de alguma regra dessas aí. Não ia ser ajudante de pedreiro. Nem médico. Nem empresário. Nem dono de budega. Essas profissões estavam fora do meu universo. Ia ser burocrata, bancário, professor. E foi o que fui.



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O boldo é um remédio impressionante. Você planta ele em qualquer vaso ou tanque com terra. Se gostas de álcool e sentes ressaca tenha um pé de boldo em casa. É praga, dá em qualquer lugar. 
Não compre o boldo de fazer chá não, esse industrializado. É uma merda. Boa é a receita que dei no início do texto. O boldo é um santo remédio. Meu novo deus chama boldo.


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Passei no concurso pra bancário com vinte e um anos. Fiquei muito feliz. Era a realização do meu sonho pessoal. Lembro bem das pessoas me parabenizando. Foi porque cancelaram algumas questões de conhecimentos de informática – queu não tinha nenhum – que passei. Banco público. Concursado. Estável.

Setenta dias depois pedi demissão.

Setenta dias depois eu estava deprimido.

Setenta dias depois minha vida passou diante dos meus olhos.

Atribuí primeiramente minha depressão – e o fato deu me sentir um merda por não conseguir me manter no trabalho dos sonhos – ao fato do trabalho dos sonhos ser num banco. Um lugar que dá muito dinheiro pra quem tem muito dinheiro e muitas dívidas pra quem tem muitas dívidas. O sistema. A representação do mal do capitalismo. E meu gerente-chefe era um gradessíssimo filho da puta. Dá vontade até de dizer o nome dele aqui, mas não vou fazer. Só pra você ter uma noção fiquei sabendo que ele sofreu um acidente de carro um ano depois deu ter saído e a única coisa que eu conseguir dizer foi: “ele morreu? ele morreu?” e o fato de ter sobrevivido me decepcionou muito.

Então bora pular essa parte que tá ficando chato o texto. Parece que to fazendo terapia aqui cocês. E por que raios o título é ainda sobre cadeias e ladrões?? Já chego lá. Uma nova pausa aí embaixo. Agora sem boldo.


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É possível você fazer o que quiser na hora que quiser do jeito que quiser? Claro, sem ferir o corpo de ninguém, apenas o seu próprio, se quiser. É possível? Tem gente que vive sem estar enquadrado ou tudo é sistema, tudo é capitalismo, tudo é submissão ao relógio?? Ando bebendo de manhã. Assim como nos melhores carnavais da minha vida. Liberdade era abrir uma lata de cerveja pela manhã. Ando abrindo.


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O banco não rolou. Bora prestar outro concurso. E passei. Agora burocrata fazedor de crachá para trabalhadores terceirizados numa universidade pública. E já no terceiro dia senti uma vontade doida de quebrar tudo. Mas eu tinha que resistir. Não se pode matar um deus de repente. Resisti por quase dois anos. Faltava muito no serviço. Sempre tinha que ir de tarde no postinho dizer queu tava com caganeira ou outra indisposição qualquer. Pra ter o atestado.

Saí, mas ainda precisava desse deus. Então segui entrando e saindo de trabalhos. E toda vez me sentia triste por não conseguir continuar. E toda vez me desapontava comigo mesmo. Me sentia um merda. Segue nova pausa, acho que a penúltima.


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Eu tinha um monte de quadrinhos guardados numa gaveta. Sempre li muitos quadrinhos. Na revista do Geraldão tinha um cartunista, irmão do Glauco, chamado Pelicano, que fez um quadrinho chamado Operário Pedrão. É na revista Geraldão número 3, quando o pai do Geraldão volta pra casa. Quando vi aquele traço do Pelicano percebi que podia ser cartunista. Mas esses sonhos a gente mata bem cedo. Com 15 anos, panfletista, futuro burocrata, já nem pensava mais nisso.

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Depressão pós pedir demissão pela enésima vez. Dirijo pra relaxar. Ideias. Desenho. Objetivo: matar o Deus Trabalho. O Espremedor de Culhões do Bukowsky, o melhor conto dele, entrando na mente. Amigos desenhistas, vários. E dois que resolveram fazer uma empreitada humilde que acabou virando trabalho também. Só que com possibilidade de se fazer na hora que quiser. Ou de não fazer, se quiser. Ou de fazer chapado, alcoolizado, “livre”.

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O melhor termo é vagabundo. Vagabundo mesmo. É isso que sou. E somos vários. E estamos em todos os lugares. Em todas as ruas. E já assumimos isso. E uns já nem ligamos pra opinião de quem acredita no deus trabalho. E vamo se virando como podemos. E tamo vivo. 


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A nova profissão eu chamava de vendedor de gibi. Ou vendedor de zine. Tem gente que chama de mangueio, pra diferenciar de trabalho. Pode ser também. Tem gente que gosta de chamar de trabalho mesmo. E tem gente que faz malabares no semáforo, e vende artesanato, poesia, quadro, caricatura, ou vende o alimento que faz e por aí vai... Tem muita gente não obedecendo nem relógio e nem patrões. A merda é que todos necessitamos duns papéizinhos picados com assinatura da presidenta pra trocarmos pelas coisas básicas à sobrevivência.

Tem o filho de gari, que mora na periferia da capital, e faz malabares no semáforo.
Tem o meu caso. Que tive acesso a livros, a quadrinhos do Geraldão, Henfil, Laerte, Angeli, desde criança, e vendo minhas brisa sobre esse mundo doido.
Tem o caso do filho do megaempresário que vive com dinheiro do pai sem trabalhar.
Tem o caso do filho do médico, que largou medicina no terceiro ano e foi viajar pra europa.

Tem o caso do filho do dono da budega, que virou professor de violão.
Mas tem também o caso do Miltinho, filho da costureira Maria, mãe-solteira de 5, que conviveu com o padrasto alcoólatra que vendia cocaína(1) pra sobreviver, e que – ao contrário dos 4 irmãos que tem carteira assinada – sobrevive praticando furtos.
E aí a gente vai prender o Miltinho?
E se vamo, vamo prender o Miltinho por quê?
Porque ele nasceu onde nasceu e “Ó! Roubou meu celular!!! Ó! Furtou minha bicicleta!! Ó! Levou meu carro!! Pega!! Prende!! Vagabundo!!”
Você nasceu onde nasceu. Eu nasci onde nasci. O Miltinho nasceu onde nasceu. Acaso. Não temos culpa. E não devemos ser encarcerados porque somos o que somos.

Não há culpado nem inocente. Cada pessoa ou coisa é diferente. Então baseado em que você pune quem não é você? Raul Seixas disse isso em 1975 no Novo Aeon.

Como disse o Capinam, ninguém deve pagar nem pela vida mais vadia. Eu despedi o meu patrão.

Assim como muita gente anda despedindo. Muito amigo meu. Assim como o Miltinho.

Eu ia terminar com alguma frase retumbante igual no primeiro texto mas encerro aqui. Acho que me fiz entender.


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(1). Mais um entorpecente desse mundão. Tem gente que bebe álcool. Tem gente que fuma maconha. Tem gente que toma lexotan. Tem gente que cheira pó.
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João da Silva é um vagabundo sem vergonha (http://quadrinhosecharges.blogspot.com.br/)

1 palpites:

De tirar o fôlego, vontade de quebrar tudo, ou de não fazer nada, confusão na cabeça...

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