- A vida é tão lógica como um gato: às vezes dá carinho porque quer comida; às vezes dá carinho mesmo sem querer comida; às vezes - muitas vezes, aliás - sequer dá carinho. Não vale a pena buscar coerência ou explicações.
- Pois é, e depois fica aqueles caras nos programas de televisão: “o gato é um felino caçador, por isso coloque a água longe da ração pra ele imaginar que está cumprindo um trajeto para o rio após a caça e blá blá blá”. E o gato nem aí pra nada disso, apenas puto de ter que andar da lavanderia até o corredor só pra tomar uma água...
- Dá vontade de pegar o cara que disse isso, convidar pra almoçar, colocar o prato com comida na mesa da sala e o copo de refrigerante no criado-mudo do quarto.
- Sim, e um cardápio bem apimentado de preferência... Mas o que isso tem a ver com a vida, tá dizendo que ela é fofinha, comilona, preguiçosa e dorme engraçada, tipo um gato?
- O que quis dizer é que na vida, quando você acha que encontrou um sentido prático, ela se comporta como um gato: danem-se os humanos, eu ajo como eu quero, não busque em mim nexos e linearidades.
- Nossa, que complicação, era mais fácil você dizer que a vida não tem lógica alguma, então.
- Ou que tentar entender racionalmente a vida seja tão improdutivo quanto tentar classificar como causa-efeito as ações de um bichano qualquer. Provavelmente Pavlov não teria sucesso se tivesse feito a experiência com um gato.
- Pavlov?
- Isso, aquele cientista russo que fez o cachorro salivar com um sino.
- Com um sino?
- É, ele fez o cachorro associar o sino com comida. Então quando o cão ouvia um sino ele começava a salivar.
- Por que diabos alguém faria isso com um cachorro? Coitado...
- Dizem que ele foi importante pra entender como nosso cérebro funciona, ou como nosso comportamento pode ser induzido de acordo com as situações.
- Ou manipulado... Dane-se, coitado do cachorro!
- É, dá dó... Pelo menos o Skinner fez com ratos.
- Fez o que?
- As experiências sobre o comportamento. Ele induzia os ratos a fazerem coisas como apertar uma barra pra ganhar comida.
- Coitado dos ratinhos!
- E depois ainda ele ficava reforçando o comportamento com estímulos ou então punindo para que eles deixassem de se comportar daquela maneira. Aquela coisa de reforço positivo, reforço negativo...
- Puta que pariu, que obsessão com isso...
- Com isso o que?
- Isso de querer controlar como todo mundo se comporta. Estimular, punir, reforçar...
- Mas olha que máximo, pensar que todos nossos atos são de alguma maneira induzidos por um monte de fatores inconscientes? Isso significa que nas pequenas coisas que fazemos podemos estar expondo um monte de coisas sobre nós mesmos que a gente mesmo não se dá conta. Acho isso incrível...
- Sim... Você, por exemplo... Ressaltou que o Pavlov era russo, mas não disse que o Skinner era americano...
- Que que tem?
- Oras, esses milhares de fatores inconscientes fizeram com que você dissesse que um era russo e omitisse que o outro era americano. Isso informa sobre você, sobre seus gostos, suas influências. Provavelmente você associa a Rússia a algo ruim, controladora, totalitária e considera os Estados Unidos o lugar da liberdade, dos direitos individuais...
- Ah, tá de brincadeira...
- É sério.. Esse seu, digamos... lapso... deve ter a ver com um monte de coisa: sua adoração por fast food, o modo como você odeia os filmes russos, seu vício por séries estadunidenses, sua paixão pelo Nirvana na adolescência, aquela professora que você odiava, Elvina Nikolaiev, você vive falando nela...
- Nossa, sério mesmo... Nunca ouvi tanta besteira... Sem falar que a dona Elvina - nem me lembre dela! - tinha descendência chechena, não russa...
- Mas na época da União Soviética era a mesma coisa... Mas enfim, fato é que você tem uma quedinha pelos ianques e um rancorzinho dos russos...
- Não diga besteira...
- Não sou eu que estou dizendo, é seu comportamento, as palavras que você escolheu... Os fatores inconscientes... Confessa, vai...
- Confessar o que? Nossa, sério mesmo que estou ainda dando corda pra essa sua teoria estúpida?!
- Não precisa negar, é normal ser imperialista. Tenho até amigos que são...
- Vai se ferrar! Aliás, como raios você sabe que o Skinner é americano se você nem o conhecia?!
- Não sabia, na verdade... Deduzi quando você ressaltou que o outro era russo... É o famoso pensamento binário... A gente tende a classificar o mundo em duas categorias: belo-feio, certo-errado, esquerda-direita, mulher-homem, ímpar-bar, russos-americanos... Logo...
- Logo?! Logo o que?! Ele podia ser afegão, dinamarquês, australiano, sírio, alemão...
- Mas o que ele é afinal?
- Americano, mas isso não quer dizer que...
- Rá! Não disse?! Logo, minha teoria estava certa.
- Logo nada! Logo o que você diz não tem lógica alguma!
- Tipo a vida?
- Tipo os gatos.
- Tipo os cientistas.
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