Nunca votei pra presidente e, ao que parece, não será dessa vez, neste segundo turno. Mas
acordei dia 6 de outubro, após o primeiro turno, repetindo, tal como
José Serra, estou seguro: "vou votar na Sra. Rousseff!".
No
começo da campanha, não me lembro qual foi o jornal que, de maneira
ofuscante, com luzes em neon, trazia uma fala de Aécio, "um tsunami vai
varrer a política brasileira". Digitei no Google pra ver o que era um
tsunami, me fazendo de tolo. Achei uma metáfora e tanto e, na
segunda-feira pós primeiro turno, enquanto imaginava a possibilidade de
votar, ''um 'tsunami' vem aí'', eu pensava, um ''tsunami''. Que imagem
reveladora, um "tsunami na política", eu repetia.
Então consultei as
estastísticas mais atuais, fiz um levantamento apurado dos números mais
fieis, tomei as pesquisas de opinão, entrevistei autoridades, experts,
ouvi especialistas, dialoguei com intelectuais, e a conclusão se
apresenta de maneira acachapante: tá foda. Como sempre esteve, né, mas
percebo que a velha máxima cartesiana, tão cansativamente repetida, em
especial em tempos de eleição - e que é importante, sim, oras -, me
incomoda bastante, é o "duvidar de tudo". Talvez eu tenha ficado
estudando antropologia porque, no fundo, as antropologias mais
interessantes são aquelas que, ao contrário, "acreditam em tudo"
previamente. Não é que não tenha discernimento, postura crítica, não,
muito longe disso, porém, é preciso minimamente, mesmo que por alguns
instantes, mesmo que de maneira muito efêmera, acreditar. A
partir de tomada a crença em alguma coisa, então se dá o passo da
desconfiança, da dúvida, do questionamento, da crítica. E acreditar na
eleição de Aécio Neves é de gelar a espinha, destruição por destruição,
assistir à reeleição de Dilma não me gela tanto.
Lembro de ver
trechos de um documentário comemorativo aos oitenta anos de Fernando Henrique
Cardoso. O ex-presidente, referindo-se ao início dos anos 1980, dizia
que naquela época a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) pegou
todos de surpresa. Eram todos eles, juntos, que formavam o bloco
contrário à ditadura militar, muito próximos politicamente. Reuniões,
reuniões, reuniões e, de repente, tinham criado um partido novo, o PT,
assim, parcela significativa deles deixou o grupo político. Fernando
Henrique ainda brincava sobre o acontecimento, dizendo-se assustado com o
nome do partido: "Trabalhadores? Mas que coisa mais século XIX. A
modernização está a caminho, eu dizia, e eu estava certo de alguma
forma...". Impossível entrar no debate sobre a configuração do mundo
industrial, estatística e socialmente falando, com suas implicações
políticas. É uma seara enorme, mesmo porque não vem ao caso. Não vem ao
caso se Fernando Henrique estava certo, porque - ele está errado, sim -
ouvindo aquilo, meu único comentário, em silêncio, mais de trinta anos
depois, foi, "e o que vocês todos fizeram, cazzo?!". FHC e os fundadores
de PT e PSDB, como todos nós sabemos, tem diferenças importantes entre
eles. Mas, de lá pra cá, acompanhamos uma transição vagarosa, que não
termina.
FHC, num país miserável, carente de serviços sociais
mínimos, inverteu a ''lógica'', digamos, transformou o Estado em um
polvo sem tentáculos, todos sabem de suas privatizações. Armínio
Fraga, então presidente do Banco Central, e já anunciado agora por Aécio
como futuro Ministro da Fazenda, tem insitido atualmente nas declarações sobre as tais
estatais e bancos públicos, por exemplo, falando de crescimento
econômico. Todos os países desenvolvidos cresceram com enormes
investimentos públicos. Hoje, os países que mais crescem são os que tem
bancos públicos fortes. Os bancos privados são justamente os principais
responsáveis pelas periódicas crises financeiras que vem retirando
recursos do Estado para mãos de algumas instituições bancárias. Os
bancos públicos são uma das formas de um Estado reduzir os juros reais, coisa com a qual Fraga não se
preocupa, pois como presidente do Banco Central, sua primeira medida foi
elevar o juros nominal para 45%, e ele insiste que isso é importante num país
miserável, que carece de investimentos e onde a população não tem
condições de comprar e investir a não ser com juros reais baixos. O eleitor de Aécio também gosta de falar em "aparelhamento do Estado", mas isso não aconteceu com FHC? Alguém já ouviu falar em sociedade civil, na relação que se estabele entre Estado, partidos políticos e sociedade civil, movimentos sociais? Sabem qual é o cenário no Brasil, nestes últimos vinte anos, dessa relação? Ironicamente, com as privatizações de FHC, até que sobrou bastante Estado pra ser "aparelhado", não?
Mas no começo da década passada, com tudo isso, éramos o
terceiro(!) país mais desigual do planeta: digamos que também foi um
''tsunami''. Os últimos 12 anos não resolveram isso, não mesmo. É
engraçado pensar que FHC fez mais reforma agrária que Lula e Dilma.
Aécio diz estar comprometido com a retomada da Reforma Agrária, mas sinaliza, por outro lado, que retirará da FUNAI a responsabilidade maior por demarcação de terras indígenas e dará atenção aos proprietários nessas áreas. É assim mesmo, num discurso confuso, acena com uma mão e empurra com as duas, diria vovó: são interesses conflitantes quando ele fala da questão indígena. E pra falar de reforma agrária, as doações de campanha comprometem tanto Dilma quanto Aécio, o agronegócio não permite apostar em qualquer candidato. Mas falar sobre reforma agrária e demarcação de terras indígenas causa arrepios no tradicional eleitor de Aécio, porque seu eleitor acha que Cuba e
Venezuela são aqui, quando, na verdade, somos um Caribe, mais um Haiti
mesmo, como cantava o Caetano, um Haiti gigantesco, só que maquiado, bem
maquiado. Os eleitores de Aécio querem é falar da corrupção, da
Petrobrás, a mais recetente, pois bem, falemos de corrupção. Os tradicionais
eleitores de Aécio não se lembram dos escândalos das privatizações de
FHC; eles não se lembram do esquema de compra de votos para a garantir o
projeto que permitiu a reeleição; eles não se lembram que o mensalão
nasceu em Minas, às asas de Aécio; não se dão conta de que o Tribunal de
Justiça de Minas acusa Aécio de um desvio na Saúde de cerca de R$ 4
bilhões - quantos mensalões petistas são isso?; os eleitores de Aécio
não se dão conta de que a expansão do metrô em São Paulo talvez seja o
maior escândalo de corrupção do país, com boa parte da direção do PSDB
paulista (Aloysio Nunes, senador por São Paulo, do PSDB, envolvido nisso
tudo também, e vice de Aécio, nunca é lembrado); para os eleitores de
Aécio, dane-se a história do aeroporto em terras da família Neves; os
eleitores de Aécio dão de ombros ao caso do helicóptero abarrotado de
cocaína - o problema não é a 'droga', é o tráfico -, em Minas, no
imbróglio com os Perrella, que sumiu dos noticiários recentemente; ninguém fala dos reajustes de professores e médicos em Minas Gerais enquanto Aécio lá foi governador. Vai
ver foi um ''tsunami'' que varreu a memória dos tradicionais eleitores de Aécio, e
também o noticiário.
Para o tradicional eleitor de Aécio, no entanto, dói ver
a empregada doméstica com tv de LCD, viajando de avião e atrapalhando a
fila de embarque; o eleitor de Aécio odeia o funk, mas faz a ostentação
do seu carro que parece um trator, comprado sob a mesma política
econômica que vende a tv de LCD; fala da inflação, mas ela é a mais
baixa desde o plano real; quer reforma tributária, mas se mexer no
Imposto de Renda ele grita; para o eleitor de Aécio, deve ser complicado
admitir um ganhor real no salário mínimo nos últimos 12 anos; o eleitor
do Aécio, impressionante, não se dá conta de que a taxa de desemprego
nunca foi tão baixa no país, mesmo com uma conjuntura internacional
amplamente desfavorável; o eleitor de Aécio, que tanto ama a ~locomotiva
do Brasil~ e o sudeste, deve ter convulsões ao perceber a inversão de
prioridade nacional, e, com o 'primeiro os que mais precisam', agora, o
Nordeste é o responsável por manter a economia brasileira crescendo, ou
seja, não dá pra falar de São Paulo e do Sudeste como ~locomotiva do Brasil~.
Não vou nem entrar nos
temas que precisariam ser discutidos: legalização do aborto, das
'drogas', criminalização da homofobia, demarcação de terras indígenas,
reforma agrária, união homoafetiva, isso tudo foi pro saco de novo,
quanto à presidência, e o legislativo eleito causa assombro. Ah, para o
eleitor de Aécio, pouco importa que ele seja um machista como o
demonstrou Luciana Genro no último debate; é irrelevante que Aécio não tenha se comprometido com a PEC contra o trabalho escravo e, sobretudo, o tradicional eleitor de Aécio vibra com o compromisso de seu candidato para reduzir a maioridade penal.
Quando da eleição de
2002, eu queria votar, mas não podia, tinha quinze anos. Perdi a vontade
logo no início da campanha, entretanto, com tudo que - já, de novo, ou ainda -
polarizava PT e PSDB, pois ali, pelo menos pra mim, tinha algo muito
claro, a Carta aos Empresários, digo, ao povo brasileiro, como chamavam,
feita pelo PT. Esses 12 anos dizem que as coisas foram ruins, mesmo que
existam coisas a se elogiar. Elogiar? É, mas faço aqui só elogio ao que
mais o preconceito de classe nesse país insiste em ver como negativo,
ao Bolsa Família, que nasceu Fome Zero, à redução da desigualdade
social, à saída do Brasil do Mapa da Fome, conforme a ONU, e ao Mais
Médicos. Ah, mais o crescimento e fortalecimento do ensino superior
público federal... especialmente nas regiões norte e nordeste, tentando, de alguma forma,
descentralizar o ensino do sul e do sudeste. Sou daqueles
~privilegiados vândalos~ de universidade pública em São Paulo, cansei de
correr da PM, de ver departamentos sufocados, sem professores,
funcionários sem reajustes salariais, etc., etc. Como estava o ensino
superior público federal com FHC, você sabe, eleitor de Aécio, você se
lembra de Paulo Renato Souza? Eu não só lembro, mas diariamente tenho
que enfrentar um dos absurdos que ele criou. Coisas que são, hmmm, deixa eu
ver, ah, sim, um ''tsunami''.
Pouco mais de um ano atrás, meus
contatos de rede sociais temiam um golpe: tem muita gente nas ruas,
diziam, com medo. Eu não entendia, depois vieram os Garis do Rio e deram
uma aula de mobilização, greve, política decididamente política! Alguns
diziam que o Brasil tinha acordado, que o Gigante acordava: é, o
gigante acordou e agora ele vai votar, minha gente. Perdoem-me se dói em
alguém, mas é a cara desse gigante sonolento que recém despertou:
cambaleante, trôpego, de ressaca, vai mal ajambrado, mas está decidido a seguir em
frente... repaginaram o Collor. Aécio pra mim é o (eterno?) retorno de
algo mal resolvido na nossa história política e institucional recente.
Há um ano, a gente se questionava por que tantas bandeiras do Brasil nas
ruas, por que cantar o Hino Nacional, por que tantos cartazes contra a
corrupção e não a favor da Reforma Agrária, por que tantos cartazes
pedindo a redução da maioridade penal e não sobre o genocídio indígena
nesse país nos últimos anos, enfim, tantas outras questões. Aécio é
parte dessa resposta, uma resposta, evidentemente, que é um ''tsunami''.
Colocado em retrospectiva, Aécio é um atraso gritante na memória
política do país, que tenta se afastar - será que tenta? acho que não -
do passado militar, de uma transição que não acontece, mesmo que com
avanços tímidos, especialmente com a Comissão da Verdade. Com a memória
do avô no sobrenome - é ruim fazer isso com as pessoas, tomá-las
pelos pais e avós, eu mesmo detesto quando fazem comigo, mas faço alusão
apenas porque é Aécio, aquele quem é acusado de censurar a imprensa em Minas Gerais, e que parece protegido pela imprensa paulista -, Aécio me leva ao velho pacto conivente dos
1970-80, da Lei de Anistia, de uma transição
que nunca terminou. O vice de Tancredo, nunca se esqueçam, era Sarney.
Aécio é um retrocesso, pra mim, na memória de uma transição lenta e que,
em certa medida, não acontece. Porque com FHC, mesmo que com todos seus
recuos sobre essa memória, ou com Lula e Dilma, e seus passos medrosos, parecia haver algo em curso, algo que
imageticamente talvez estivesse sendo ultrapassado. Com Aécio, não,
vejo-o como desgarrado de um compromisso com essa memória, com a
recuperação, com a justiça que não se faz a esse passado ocultado por
militares e governos.
Disse que Serra vai votar na
Dilma, vai, ele é o menos privatista dos PSDB de alcance nacional. Serra
é uma versão da Dilma, dos nacional desenvolvimentistas de tradição
cepalina, do ponto de vista econômico, só que bem mais conservador
socialmente, politicamente. Ele vota na Dilma, estou seguro. Assim como,
não sou eu quem está dizendo, Luiz Carlos Bresser-Pereira, um dos
fundadores do PSDB, já declarou, vota na Dilma. Serra, contudo, não vai
admitir. É uma questão geracional, também, oras, eu brinco, ele ficará
sem amigos. FHC e ele já brigaram tanto nas eleições passadas. Entre as
5h30 e as 6h da manhã, no horário mais frio do dia, com a cabeça no
travesseiro, Serra vai se lembrar de Plinião (de Arruda Sampaio), já que
este era seu parceirinho de truco. Plinião vai assombrá-lo, jogar na
cara, "pô, parcerage, tá de brincadeira, né, essa criatura aí como
presidente: mate-me duas vezes, ou prepare-se, minha campanha do lado de
cá agora será pra que você queime direto no inferno! Já não faltam
motivos! Então não conte comigo pra interceder junto à Compadecida!".
Plinião é João Grilo.
Só me sinto representado pelos quase trinta
por cento de abstenções, mais brancos e nulos, no cálculo dos votos
para presidente no primeiro turno. Esse número sempre foi alto e só eu estou surpreso?
Somos mais de 38 milhões. Somos mais que os eleitores de Aécio no
primeiro turno! Os eleitores de Aécio são 34,8 milhões. É, tremam, seus
ridículos! Mas não nos faremos de 'tsunami', estejam certos, não
cairemos na mesma metáfora profundamente infeliz.
Não consigo, agora,
mesmo diante de Aécio, ser conivente com as mortes no campo, com a
violência durante a Copa, com as Usinas Hidrelétricas, com... com...
com... putz, com muita coisa. Não voto na Dilma. Quer dizer, por enquanto, né, vai que a coisa aperta, bate o desespero... e então eu cruzo o estado de São Paulo no próximo dia 26 só pra votar nela.
Enfim, os petistas estavam preocupados - com alguma razão, vai, com a
ascensão meteórica de Marina, que só disse e fez bobagem, e deixou que
fizessem e dissessem por ela, por isso a minha preocupação também :: aliás, ela não parou, enquanto escrevo ela deve ter dito e feito mais umas três besteiras -, e
sufocaram uma planta que nasceu no quintal. Era a chance que vocês
tinham de superar seus próprios calcanhares. Todavia, escolheram o
caminho errado, se esqueceram daquele chihuahua que latia na calçada.
Com todo respeito aos animais, a comparação é ruim, eu sei. Mas o
cachorrinho passou pelas grades do portão, está na porta da sala de
jantar, minha gente, e cresceu tanto que mais parece um buldogue, um pit
bull com olhinhos brilhantes.
Na segunda-feira depois do
primeiro turno, amanheci votando na Dilma, mas desvotei ao longo do dia, assim como José Serra.
Acho que vou entrar pra luta armada, porque esse lance de desobediência
civil já tá me cansando, não tenho mais idade, a vida é muito curta
pra ficar engolindo sapo e correndo do Choque. Porque também está
anunciado, vem aí muita (ou mais) destruição - ai, desculpem, digo -,
vem aí um ''tsunami''.