quarta-feira, 2 de julho de 2014

Coluna do Leitor - Polícia Militar e a democratização das bombas

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários



ATENÇÃO
 Este texto pode conter doses altas de sarcasmo e ironia. Leia com moderação e ponderação1.



A Polícia Militar do Estado de São Paulo tem sido nos últimos meses um exemplo de democratização e bom uso do dinheiro público. Até meados de 2013, alguns dos artefatos adquiridos pela corporação com dinheiro público há muito tempo estavam estocados nos almoxarifados dos batalhões, empoeirados, alguns até com prazo de validade expirado (conforme verificamos em 2013, quando a PM usou bombas de gás lacrimogênio vencidas). Um verdadeiro desrespeito com o dinheiro público. Milhões gastos em munições não letais, abarrotando os batalhões.


Mas do ano passado pra cá, a corporação passou por um choque2 de gestão – como costuma dizer nosso excelentíssimo Governador do Estado de São Paulo Geraldo Alckmin – e muita coisa mudou de lá pra cá. O grande arsenal – até então ocioso – foi democraticamente distribuído à população, marcando um processo de retorno dos investimentos públicos àqueles que, com seus impostos, financiam a ação estatal. E não são apenas as bombas de gás lacrimogênio e efeito moral, balas de borracha e os litros e mais litros de spray de pimenta que estão retornando aos cidadãos. As práticas da PM comumente aplicadas a negros e pobres, como as prisões arbitrárias, tortura, confissões forçadas, flagrantes forjados, agora não são mais uma exclusividade das periferias urbanas. Todos e todas podem ser presos de forma ilegal e injustificada por um policial militar sem identificação.


Observa-se aqui um alargamento da atuação desta corporação que antes restringia sua atuação a alguns aglomerados de pessoas de baixa renda, marginalizados, em especial jovens negros. As Polícias Militares dos estados brasileiros, em especial a de São Paulo e Rio de Janeiro, perceberam o quão antidemocrática era esta restrição de atuação. Afinal, jovens negros e pobres não representam a totalidade da sociedade. É preciso ampliar o escopo de atuação. E para isso, novas formas de atuação foram adotadas pelas corporações, em perfeita consonância com os governadores de seus estados. A ordem agora é: qualquer aglomeração de pessoas terá direito a receber uma cota significativa de munições e artefatos, além é claro das atitudes enfáticas dos policiais militares. Não importa se é preto, se é mulher, se é morador de rua, se é estudante, professor, aposentado, metroviário, criança, black bloc, pacifista, torcedor da Argentina, do Brasil; não importa se você estava ali só de passagem, se estava só esperando o ônibus pra ir pra casa, se está num bloco de carnaval em Campinas ou se é advogado em exercício de sua função. Choque de gestão! CHOQUE! Democratização das bombas e das arbitrariedades policiais é a palavra de ordem do momento.


E este processo de democratização não está restrito às munições “não-letais”3. Nos últimos meses vimos também o uso de armas letais4 quando o objetivo é dispersar qualquer aglomerado de pessoas.


Certamente haverá aqueles que discordam de tal política adotada pelos governos estaduais e das PMs, dizendo que esta democratização é ainda muito restrita, já que não atinge aqueles que pagaram mil reais pra ver um jogo da Copa, ou que, vestidos com seus ternos Armani, se reúnem na FIESP ou no Palácio dos Bandeirantes. Para estes críticos, a PM discrimina este grupo que nunca na vida teve a oportunidade de sentir o cheiro agridoce de um spray de pimenta; que nunca pôde ter os olhos cheios de lágrimas por conta da fumaça tóxica de uma bomba; que nunca sentiu na pele (literalmente) o suave ricochetear de uma macia bala de borracha. Pobres coitados... Nunca terão essa oportunidade.


A PM está democratizando seu arsenal de arbitrariedades, mas não é pra todos. A democracia não é pra todos.


É democracia, mas tem dono.



1 O termo “ponderação” empregado neste caso não faz nenhuma referência ao filósofo das elites coxinhas Luiz Felipe Pondé.

2 Choque mesmo! Batalhão de CHOQUE!

3 Não-letais, mas que podem matar. Deveriam se chamar munições possivelmente-não-letais.

4 Essas são letais mesmo. Sem eufemismos.



Ricardo Normanha de Almeida faz charges e é doutorando do Programa de Doutorado em Ciências Sociais – IFCH / Unicamp. É professor de Sociologia, além de correr de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, pois não é muito afeito à democratização à moda da Polícia Militar de São Paulo.



 

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