ATENÇÃO
Este texto
pode conter doses altas de sarcasmo e ironia. Leia com moderação e
ponderação1.
A Polícia Militar do
Estado de São Paulo tem sido nos últimos meses um exemplo de
democratização e bom uso do dinheiro público. Até meados de 2013,
alguns dos artefatos adquiridos pela corporação com dinheiro
público há muito tempo estavam estocados nos almoxarifados dos
batalhões, empoeirados, alguns até com prazo de validade expirado
(conforme verificamos em 2013, quando a PM usou bombas de gás
lacrimogênio vencidas). Um verdadeiro desrespeito com o dinheiro
público. Milhões gastos em munições não letais, abarrotando os
batalhões.
Mas do ano passado pra
cá, a corporação passou por um choque2
de gestão – como costuma dizer nosso excelentíssimo Governador do
Estado de São Paulo Geraldo Alckmin – e muita coisa mudou de lá
pra cá. O grande arsenal – até então ocioso – foi
democraticamente distribuído à população, marcando um processo de
retorno dos investimentos públicos àqueles que, com seus impostos,
financiam a ação estatal. E não são apenas as bombas de gás
lacrimogênio e efeito moral, balas de borracha e os litros e mais
litros de spray de pimenta que estão retornando aos cidadãos. As
práticas da PM comumente aplicadas a negros e pobres, como as
prisões arbitrárias, tortura, confissões forçadas, flagrantes
forjados, agora não são mais uma exclusividade das periferias
urbanas. Todos e todas podem ser presos de forma ilegal e
injustificada por um policial militar sem identificação.
Observa-se aqui um
alargamento da atuação desta corporação que antes restringia sua
atuação a alguns aglomerados de pessoas de baixa renda,
marginalizados, em especial jovens negros. As Polícias Militares dos
estados brasileiros, em especial a de São Paulo e Rio de Janeiro,
perceberam o quão antidemocrática era esta restrição de atuação.
Afinal, jovens negros e pobres não representam a totalidade da
sociedade. É preciso ampliar o escopo de atuação. E para isso,
novas formas de atuação foram adotadas pelas corporações, em
perfeita consonância com os governadores de seus estados. A ordem
agora é: qualquer aglomeração de pessoas terá direito a receber
uma cota significativa de munições e artefatos, além é claro das
atitudes enfáticas dos policiais militares. Não importa se é
preto, se é mulher, se é morador de rua, se é estudante,
professor, aposentado, metroviário, criança, black bloc, pacifista,
torcedor da Argentina, do Brasil; não importa se você estava ali só
de passagem, se estava só esperando o ônibus pra ir pra casa, se
está num bloco de carnaval em Campinas ou se é advogado em
exercício de sua função. Choque de gestão! CHOQUE! Democratização
das bombas e das arbitrariedades policiais é a palavra de ordem do
momento.
E este processo de
democratização não está restrito às munições “não-letais”3.
Nos últimos meses vimos também o uso de armas letais4
quando o objetivo é dispersar qualquer aglomerado de pessoas.
Certamente haverá
aqueles que discordam de tal política adotada pelos governos
estaduais e das PMs, dizendo que esta democratização é ainda muito
restrita, já que não atinge aqueles que pagaram mil reais pra ver
um jogo da Copa, ou que, vestidos com seus ternos Armani, se reúnem
na FIESP ou no Palácio dos Bandeirantes. Para estes críticos, a PM
discrimina este grupo que nunca na vida teve a oportunidade de sentir
o cheiro agridoce de um spray de pimenta; que nunca pôde ter os
olhos cheios de lágrimas por conta da fumaça tóxica de uma bomba;
que nunca sentiu na pele (literalmente) o suave ricochetear de uma
macia bala de borracha. Pobres coitados... Nunca terão essa
oportunidade.
A PM
está democratizando seu arsenal de arbitrariedades, mas não é pra
todos. A democracia não é pra todos.
É
democracia, mas tem dono.
1
O termo “ponderação” empregado neste caso não faz nenhuma
referência ao filósofo das elites coxinhas Luiz Felipe Pondé.
2
Choque mesmo! Batalhão de CHOQUE!
3
Não-letais, mas que podem matar. Deveriam se chamar munições
possivelmente-não-letais.
4
Essas são letais mesmo. Sem eufemismos.
Ricardo Normanha de Almeida faz charges e é doutorando do Programa de Doutorado em Ciências Sociais – IFCH / Unicamp. É professor de Sociologia, além de correr de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio, pois não é muito afeito à democratização à moda da Polícia Militar de São Paulo.
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