Tosse, tosse, tosse. Para, presta atenção. Tosse, tosse, tosse, tosse,
tosse. Fecha a torneira. Tosse, tosse. Tia, tá tudo bem? Tosse, tosse.
Tia? Abaixa o fogo da panela de arroz. Tosse, tosse, tosse, tosse. Vai
ao quarto. Tia? A saliva escorria boca afora. Tia? A boca tinha se
virado toda para o lado esquerdo, acompanhando o desenho do corpo, que
se inclinava, debruçando-se sobre o mesmo lado. Tia,
fala comigo, tia. Os joelhos, que viviam próximos quando ainda levavam
os pés, ao caminhar, fazendo das canelas um v de passo demorado, de pé
pra dentro, encavalaram-se. A tia acabrunhara-se muito. Revirados, os
olhos não viam nada. A tia parou de tossir.
A tia não respondeu. A vizinha deve saber o que é. Vai até a vizinha e a vizinha vem ver o que é que é com a tia. A vizinha diz, ué, melhor chamar um médico, uma ambulância. Chama a ambulância. As pessoas que chegam na ambulância dizem que é grave: é um acidente, mesmo para quem estava parada, sentada, numa cadeira de rodas, assistindo à tv. A tv é grave mesmo. Mas o acidente aconteceu por dentro da tia. Deram um nome completo: vascular cerebral. No hospital, dizem, o médico é quem vai mesmo dizer, ou redizer o já dito, o que está todo mundo vendo. Tá todo mundo vendo desde que a tosse parou, pensa.
Começou foi quando a tia caiu, né, quebrou o fêmur e a bacia. Foi lá, ano passado. Não. Começou quando ela não quis mais sair de casa, parou de trabalhar, ficava só em casa, saía muito pouco, só às vezes, só de vez em quando, ia ao mercado. Foi quando traziam as coisas pra ela, os conhecidos, os vizinhos. Foi aí. Não, foi quando o marido faleceu, lá atrás: ela ficou sozinha. Ah, a solidão faz isso com as pessoas. Mas pessoas que vivem rodeadas de gente também ficam assim. É a solidão de si mesmo, o abandono dos outros e o próprio abandono. Foi isso, foi quando a tia deixou todos pra trás, não quis mais saber dos irmãos, dos sobrinhos, da família. Demorou muito pra ter algum contato depois. Família, não, ah, ela sempre foi assim, como se diz, difícil, mentia, escondia as coisas, não falava, guardou muita coisa, não suportou, era muita coisa ruim dentro de si. A tia foi na direção contrária àquela seguida pelas estrelas que, perto do fim, se expandem antes da explosão que lhes dá cabo, viveu foi nessa direção contrária a tia.
Não, não sabe. Aliás, o não era a palavra que a tia mais repetia. É isso, ficou assim de tanto não. Era não de manhã, não quero sair. Não de tarde, não quero ir pra sala, prefiro ficar no quarto. Não, não vou fazer, já vai começar o programa que ensina a cortar as unhas, já vai começar a novela das seis, a novela das sete, aquele filme agora é que vai passar, não. Durante a noite, repetia em sonho o não, não, não, não, não. Foi assim que no hospital também lhe disseram não: não tem o que fazer. Primeiro não pode ir pra UTI. Depois que vai, não pode sair ainda. Quando sai, não pode ir embora. Não vai levantar da cama, já não tem consciência, não vai voltar a falar, não, não, não.
Não era uma manhã de sexta-feira, mas tanto faz, que dia era mesmo não sabe. Os dias já não fazem diferença. Não sabe o começo dessas coisas, mas sabe o fim, que aguarda, dá assistência ao que não parece fazer diferença à tia. Chega, senta ao lado dela, fala qualquer coisa com ar de naturalidade, como quem dá bom dia, pergunta pelo programa de tv, troca de canal, mexe nas revistas ao lado da cama. Espanta o silêncio. A tia às vezes abre os olhos. Ao lado dela, cochila, sente medo, faz crochê, pergunta-se pelo próprio destino. Percebe que o fim é uma espera que, absurdamente, tem até mesmo um começo, aquele que não é uma escolha, e que perdura na estranha obrigação de não aceitar o inevitável.
A tia não respondeu. A vizinha deve saber o que é. Vai até a vizinha e a vizinha vem ver o que é que é com a tia. A vizinha diz, ué, melhor chamar um médico, uma ambulância. Chama a ambulância. As pessoas que chegam na ambulância dizem que é grave: é um acidente, mesmo para quem estava parada, sentada, numa cadeira de rodas, assistindo à tv. A tv é grave mesmo. Mas o acidente aconteceu por dentro da tia. Deram um nome completo: vascular cerebral. No hospital, dizem, o médico é quem vai mesmo dizer, ou redizer o já dito, o que está todo mundo vendo. Tá todo mundo vendo desde que a tosse parou, pensa.
Começou foi quando a tia caiu, né, quebrou o fêmur e a bacia. Foi lá, ano passado. Não. Começou quando ela não quis mais sair de casa, parou de trabalhar, ficava só em casa, saía muito pouco, só às vezes, só de vez em quando, ia ao mercado. Foi quando traziam as coisas pra ela, os conhecidos, os vizinhos. Foi aí. Não, foi quando o marido faleceu, lá atrás: ela ficou sozinha. Ah, a solidão faz isso com as pessoas. Mas pessoas que vivem rodeadas de gente também ficam assim. É a solidão de si mesmo, o abandono dos outros e o próprio abandono. Foi isso, foi quando a tia deixou todos pra trás, não quis mais saber dos irmãos, dos sobrinhos, da família. Demorou muito pra ter algum contato depois. Família, não, ah, ela sempre foi assim, como se diz, difícil, mentia, escondia as coisas, não falava, guardou muita coisa, não suportou, era muita coisa ruim dentro de si. A tia foi na direção contrária àquela seguida pelas estrelas que, perto do fim, se expandem antes da explosão que lhes dá cabo, viveu foi nessa direção contrária a tia.
Não, não sabe. Aliás, o não era a palavra que a tia mais repetia. É isso, ficou assim de tanto não. Era não de manhã, não quero sair. Não de tarde, não quero ir pra sala, prefiro ficar no quarto. Não, não vou fazer, já vai começar o programa que ensina a cortar as unhas, já vai começar a novela das seis, a novela das sete, aquele filme agora é que vai passar, não. Durante a noite, repetia em sonho o não, não, não, não, não. Foi assim que no hospital também lhe disseram não: não tem o que fazer. Primeiro não pode ir pra UTI. Depois que vai, não pode sair ainda. Quando sai, não pode ir embora. Não vai levantar da cama, já não tem consciência, não vai voltar a falar, não, não, não.
Não era uma manhã de sexta-feira, mas tanto faz, que dia era mesmo não sabe. Os dias já não fazem diferença. Não sabe o começo dessas coisas, mas sabe o fim, que aguarda, dá assistência ao que não parece fazer diferença à tia. Chega, senta ao lado dela, fala qualquer coisa com ar de naturalidade, como quem dá bom dia, pergunta pelo programa de tv, troca de canal, mexe nas revistas ao lado da cama. Espanta o silêncio. A tia às vezes abre os olhos. Ao lado dela, cochila, sente medo, faz crochê, pergunta-se pelo próprio destino. Percebe que o fim é uma espera que, absurdamente, tem até mesmo um começo, aquele que não é uma escolha, e que perdura na estranha obrigação de não aceitar o inevitável.