quinta-feira, 5 de junho de 2014

Coluna do leitor: Tá Chegaaando a Hora

. . Por Mistura Indigesta, com 0 comentários

(por Márcio M. Ribeiro)

Minha relação com o futebol sempre foi muito mais de admirador do que de jogador, mas gosto de lembrar de duas partidas nas quais entrei em campo. Em nenhuma delas joguei com Pelé [1]. A primeira foi no começo dos anos 2000 em uma praia isolada de Ilha Bela. Lembro de como me senti em casa jogando na areia com um grupo de caiçaras que acabara de conhecer, mas que em menos de 45 minutos já me chamavam de Magrão. A segunda foi na Grécia, dez anos depois, com colegas de laboratório. Havia algo de certo na primeira partida e algo de errado na segunda. Sempre desconfiei que isso se relacionava com o fato de que os primeiros, como eu, jogavam se imaginando como seus ídolos. Cada jogada, ou era a frustração de não conseguir estufar aquele filó como sonhávamos, ou a consagração da firula exata invejada pelo compositor [2]. Além desta referência ao imaginário da infância, outra dimensão que deve ter alguma relevância é toda a gama de significados que eu compartilhava com aqueles de pés descalços, mas não com meus colegas de trabalho. Apesar de tudo o que tínhamos em comum, os europeus jamais compreenderiam o orgulho de Jackson do Pandeiro em 62 [3], as ironias de Moreira da Silva em 66 [4] ou a frustração de Luís Americo em 74 [5]. 

Passada a nostalgia que vem forte quando estamos longe, a pergunta que nunca me saiu da cabeça sempre foi: de onde vem esses significados compartilhados? Esse sentimento ufanista que doentemente me faz achar poético o menino que deixa a vida pela bola? [6

Já no começo do século XX Carmem Miranda repetia incansavelmente que "todos têm seu valor" [7], muito mais para convencer a si própria do que ao resto do mundo do valor do "povo brasileiro" em geral e do "caboclinho" em particular. Nem Leônidas, nem o tal povo brasileiro jamais precisariam disso, mas por aqui parece difícil se livrar deste sentimento. Eis que no fim dos anos 50 e começo dos 60, enfim, "provamos" nosso valor. Didi, Garrincha e Pelé mostraram pro mundo o que era "nossa" escola, como cantou Tom Zé anos depois: "[nessa época] ninguém sabia que diabo era brasil, se a capital disso aqui era la paz ou buenos aires (...) a gente não era nada. E deus se manifestou na forma dessas criaturas Pelé, Garrincha etc. para nos engrandecer como povo. Para a admiração do mundo" [8]. Pouco depois veio o golpe e os militares não perderam a chance de transformar esse sentimento de país colonizado em puro e simples ufanismo. "Torci, sofri, mas afinal ganhei o mundo. Sou tricampeão do mundo" cantavam os Golden Boys nessa época [9] (lembro desta música sempre que ouço aquela propaganda com o Paulo Miklos e a Fernanda Takai). Mas foi também na década de 70 que se acentuou o processo inverso. Nunca mais seria lançada uma música enaltecendo o futebol sem que viesse outra a reboque criticando-o. Se Jorge Ben homenageava Pelé [10], Gonzaguinha lembrava que craque mesmo é o povo brasileiro que carrega esse time de terceira divisão [11], povo que sempre soube que aqui só não há revolução porque nosso time sempre é campeão [12]. Enquanto Wilson Simonal tentava nos convencer de que aqui era o país do futebol e a deixarmos todo o resto pra fora [13] (como o Pelé no comercial do supermercado), Gabriel Pensador nos lembrava de que, se aqui era o país do futebol, é porque futebol não se aprende na escola e que, se de vez em quando nasce por aqui um Brazuca, o tempo todo morrem Zé Batalhas assinados pela PM [14].

Este ano a copa do mundo de futebol masculino será aqui perto. Neymar continuará fazendo seus gols e continuaremos sendo presos (por aqui, atacar pela esquerda é caso de polícia [15]) e haverá comemoração e haverá luta.

2  O Futebol - Chico Buarque
3  Scratch de Ouro - Jackson do Pandeiro
4  Morengueira contra 007 - Moreira da Silva
5  Camisa 10 - Luis Americo
7  Deixa falar - Carmen Miranda 
8  Frevo do Bi - Jackson do Pandeiro/Tom Zé
9  Sou tri-campeão - Golden Boys
10 O nome do rei é Pelé - Jorge Ben
11 E por falar em Pelé - Gonzaguinha
13 Aqui é o país do futebol - Wilson Simonal
14 Brazuca - Gabriel Pensador
15 Bola pra frente - Tom Zé

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Márcio M. Ribeiro começou sua carreira como goleiro-artilheiro em partidas de gol-a-gol com seu irmão. Quis a vida lhe oferecer novos destinos, logo passou a treinar como pivô de três dentro três fora com os amigos da rua. Jogador dedicado, sempre focado no trabalho em equipe, conquistou respeito. Hoje, atua no time de professores da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, continua se destacando por seu posicionamento dentro e fora de campo e por suas belíssimas assistências.

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