VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

A funcionária da biblioteca

. . Por Unknown, com 1 commentário


Tudo começou na saída do restaurante do clube. Quando já estava lá fora, na fila do cafézinho, me dei conta de que o prato estava nas minhas mãos, em vez de abandonado cinquenta metros atrás. Depois foi pegando a comida, já passado o feijão e a salada, percebi que precisava de um prato se eu quisesse mesmo carne e arroz. Ao redor, as pessoas riam. Bullying. Três vezes sentei diante do prato e me perguntava o que estava faltando, mas não encontrava uma resposta até que talheres se mostravam ausentes. Foi, foi e então, num belo - talvez nem tanto - dia, estranhamente, eu tinha dois garfos nas mãos para comer. Demorou, porém, entendi que não é bom comer pão de queijo antes das refeições, me deixa atrapalhado.

Não sabia se era progresso, repassando os acontecimentos na minha cabeça, se um avanço em relação a tantos anos de dedicação e correspondente alheamento, ou o fim, outra vez o fim. A primeira vez foi quando cheguei na biblioteca de tantos anos para mim e a funcionária, que atende por Aline, me recebeu visivelmente consternada, dizendo que tinham acabado as chaves dos armários para guardar a bolsa. Isso faz tempo. Não tive dúvidas, foi pura impulsividade, lhe perguntei abruptamente se ela não havia guardado uma chave só para mim. Ela ficou ruborizada. Triunfei. A estagiária ao lado dela, talvez por inveja - quero acreditar -, enquanto estendia a mão com uma chave restante, me olhou ¬¬. Não me abati, me mantive firme quanto às minhas intenções. Mesmo ruborizada, Aline me dizia não entender como poderiam ter acabado as chaves, que ainda era cedo demais, e que somente algum evento nos andares do prédio poderia ter provocado aquilo. Não contente com a primeira infâmia, que lástima, prossegui dizendo que depois de tanto tempo eu merecia uma chave cativa, como que em honra à minha presença diária. Foi demais, Aline me olhou como se contempla um pé de alface. Que fracasso, eu, que já escolhia as palavras para me declarar, então só queria um pão de queijo pra me consolar.

A biblioteca do clube era meu lugar preferido. No mundo mágico do clube, a biblioteca era a minha segunda casa. Juro, não estou me gabando: me tornei um mané por isso. Em todos esses anos, me lembro de uma funcionária lendária, a Luscínia, todo mundo morria de medo dela, sério, e eu também. Ela tomava muitos remédios, antidepressivos, não sei, e durante a noite, quando era o turno dela lá, era comum encontrá-la andando vagarosamente pelos corredores, arrastando as sandálias, empurrando os carrinhos abarrotados de livros. Luscínia usava calças largas que depois até viraram moda, calças que parecem aquelas de palhaço: hippie chique. Ela dizia um "oi" demorado, como quem se esforça muito pra levantar a língua, tinha uma voz tremida, era muito alta, quase do tamanho das estantes. As calças largas faziam dela uma imagem por demais caricata, enorme, fina, comprida e com a cintura e as pernas aparentemente largas. Havia um descompasso em Luscínia. Quantas vezes ela não me parava pra conversar, eu ali engolindo seco, respirando fundo pra não fazer xixi nas calças e ela no maior papo?! Quantas vezes eu não esperei a chuva passar debaixo da entrada coberta, ali na frente da biblioteca, enquanto Luscínia fumava um cigarro ofensivo de tão ruim?! Ela, olha só, inclusive emprestou um livro pra mim uma vez, mesmo eu estando suspenso depois de um atraso. Luscínia fez isso no nome dela, na carteirinha de funcionária. Mas ela virou lenda, desapareceu quando fiquei desempregado e parei de frequentar o clube. Dizem que ela, depois de afastada, se aposentou. Não sei mesmo.

Aline sempre ficou na recepção durante o dia e, nossa, como essa criatura me odiou. Nunca olhou na minha cara a tratante, nunca respondeu a nenhum dos meus milhares de "bom dia" e "boa tarde". Aline é uma nanica, não deve ter um metro e meio de altura, ridícula. Ela nunca usou crachá, então só descobri que o nome dela era Aline depois de muito tempo, daí fui ousado, passei a nomear o bom dia, era "oi, Aline, bom dia", e nada. Eu era rejeitado, oh, desprezado, oh, ignorado, oh, esquecido, oh, mas tudo isso me fez insistir. Eu brincava, às vezes, para outras pessoas me referia a ela como a funcionária que levava um dragão sobre os ombros, desfilando ódio e labaredas ao redor. Passei 47 anos, 8 meses e 19 dias tentando arrancar, na força bruta, um sorriso da Aline. Claro, nunca obtive sucesso. Ela, obviamente, me perseguia, o ódio dela era tamanho que, uma vez, eu já estava indo embora do clube, eu já tinha recebido aviso prévio na firma e emprestava um último livro na biblioteca antes de perder o vínculo: Aline me pediu, além da carteirinha, o R.G.!! Eu gargalhava, repetia, "não é possível, você só pode tá me zuando, cara, você me vê aqui há anos, toda semana, e vem me pedir o R.G. pra te provar que eu sou eu mesmo?! Ah, não é possível!!" Gente, como fiquei indignado aquele dia. Aline sempre me odiou. Acho que, naquele instante, se ela tivesse uma faca, ou uma tesoura que fosse nas mãos, ela tinha dado cabo à minha vida.

Duro é que sou muito bom, sou um dos melhores quando o assunto é tática e estratégia: pra provocar ciúmes na Aline, comecei a puxar conversa com outra funcionária, Sílvia, que também faz o turno durante o dia. Sílvia ficou minha amiga e sempre retornava assunto, trocava figurinha sobre amenidades, coisas sobre o tempo, se vai chover, sobre o fim de semana, sobre qualquer coisa que costure uns segundos de nosso dia. Ah, isso deve ter despertado a fúria, a voracidade, o ciúme, a inveja incontrolável na Aline. Porque eu quase me estatelei no chão quando, me vendo cruzar os corredores da biblioteca, Aline virou-se pra mim e disse "oi, Hugo, tudo bem?". Fiquei assustadíssimo aquele dia, durante a noite, inclusive, nem mesmo cochilar eu consegui, eu ficava reproduzindo a imagem da Aline se dirigindo a mim "Oi, Hugo, tudo bem?" - ela sabia o meu nome!

Ah, uma vez tive um pequeno sucesso. Versado também na arte de reclamar, passei a entrada da biblioteca praguejando contra a espécie de ser que deixara aquele ar condicionado efusivamente ligado. Lá fora já fazia muito frio, oras, para que raios o ar condicionado deveria estar ligado?! Aline estava sozinha no balcão: era a minha chance! Tentando ser eu mesmo sem ser eu mesmo, mesmo, fui de papinho: "Ui, tá frio aqui, né?!"; "Ai, não sei o que acontece, ligamos e desligamos o dia todo porque esfria demais, não conseguimos regular..."; "Ainda mais hoje com essa chuva pela manhã, né? Fica difícil com esse frio..."; "Difícil, o quê? Por que fica difícil?" - surpresa; "Ah, e a preguiça que dá, né?!"; "Ai, Hugo - ela sabia meu nome mesmo! - você não tem jeito de preguiçoso!" - toma essa mundo!; e eu, que não tenho dignidade, insisti: "Ah, o que é isso?! Se tem uma coisa que eu entendo bem é de preguiça, viu!". Enquanto Aline sorria, eu triunfava. Para um pão de queijo eu ia convidá-la quando, tadan, de repente, não mais que de repente, Sílvia chegou cortando o assunto, a conversa toda, o clima, me deixando sozinho, no vazio, levando Aline para uma conversa burocrática que fosse. Ah, conspiração, ah.

É tanto azar, que acho que perdi Aline de vez ontem. Foi demais pra mim, quatro policiais estavam entrando na biblioteca quando eu voltava ao armário para buscar meu giz de cera esquecido na mochila. Só percebi minha reação quando Aline jogou um copinho d'água no meu rosto, eu havia paralisado de medo. Mas não podia, eu tinha que impressioná-la, oras, quatro policiais na biblioteca, então me aproximei para saber o que se passava. Nenhum deles queria emprestar ou devolver um livro, uma pena, e um deles se dirigiu à Sílvia no balcão. Ele tinha um papel nas mãos e, enquanto se aproximava, ergueu e dispôs o papel sobre o balcão com a autoridade que ele e alguns outros mundo afora acreditam que tem, no tom cerimonioso de um coxinha típico:

- Estamos à procura d'o Café. Por gentileza, onde se encontra o Café?
- O Café, pois, onde está o Café, quero saber onde é que está meu amigo Rafael, o que fizeram com ele?! – me aproximei também do balcão enrolando meu bigode, a maneira Dalí.
- Temos esta ordem para cumprir – apontava para o papel – e precisamos d'o Café, aqui também diz que o Café está na biblioteca – transmitindo serenidade.
- É, traga o Café aqui imediatamente, rã! – exaltado, eu só queria impressionar Aline, que, do outro lado, via tudo aquilo com desdém.
- O senhor queira se conter, por favor, deixe que fazemos o nosso trabalho – insípido.


Eu, que deixei de ser bobo faz muito, fiz pose e aguardei do lado, em silêncio. Por fim, o Café tinha açúcar, era branco e não atendia por Rafael. Não me interessei mais, dei de ombros e voltei para o meu canto. Munido do meu giz de cera, ainda tentei puxar assunto com Aline sobre café sem açúcar. Ela não entendia com eu saíra do terror imobilizado para o Clint Eastwood dos trópicos tentando interagir com os policiais, o olhar dela nesse momento eu gostaria de esquecer. Acho que a perdi para sempre. Definitivamente, nem em pequenas doses, pão de queijo nunca mais.




domingo, 4 de agosto de 2013

[Tradução] Eu estou bem

. . Por Fernando Mekaru, com 0 comentários

NOTA DO TRADUTOR: O texto a seguir se propõe a uma questão difícil: como discutir uma questão como o feminismo do ponto de vista do gênero privilegiado na sociedade, sem se deixar nublar nas reflexões pelo fato de certos privilégios serem tomados como dados e, às vezes, nem se perceber este fato?

Este texto não se pretende como portador de uma verdade, ou uma resposta definitiva a esta questão - apenas como um ponto de vista que vai para além da mera intuição e do senso comum. É uma contribuição possível para solucionar uma questão cuja resposta, a princípio longe de ser encontrada, se lapida nos debates, reflexões e combates que giram em torno dela.
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Começou outro dia. Estava tranquilamente me queixando por ser obrigado pela sociedade a me barbear todos os dias, e que é realmente lamentável, e até mesmo que um pouco disso era culpa das mulheres, quando ela me jogou na cara:

'Pare um pouco de reclamar; você não é oprimido.'

Observei-a de toda minha altura (e vi que meço 1,73m, de sapatos; foi só um pouco mais do que altura física), e me preparei para lhe devolver meu discurso de sempre em relação a esta questão. Um discurso que aprendi dos outros. Eu ia lhe explicar que, sim, eu também sou oprimido. Que o patriarcado, veja bem, também oprime os homens, minha cara. É como o racismo: os brancos também sofrem com ele, você sabe. E nem te conto sobre a exploração capitalista. Eu sei alguma coisa da exploração capitalista: eu sou professor. Isso quer dizer que ela me é jogada na cara todo dia.

Foi então que ouvi uma voz. Uma voz que vinha de muito longe. Bem do fundo de mim. Creio que ela sempre esteve lá, como um ruído de fundo. Mas ela começo a crescer, a aumentar, a tornar-se verdadeiramente enorme. E ela dizia a mesma coisa que a moça:

"Você não é oprimido."

Ela se tornou um incômodo tão grande na minha cabeça que me senti mal - com a vergonha, com o medo, com a incompreensão. Era tão grande que não soltei meu pequeno discurso de sempre. Não, me calei e saí.

"Você não é oprimido."

Todos esses anos reclamando, sendo persuadido que partilhávamos as mesmas lutas, que estávamos todos encarando o opressor para chegar lá. Foi um choque sagrado, quando penso nisso.

Creio que isso começou quando pude formular o seguinte: "sou um homem branco, hétero, cis e de alta classe". Há uma questão que se sucede: "Mas quem me oprime, realmente?". Procurei bastante, refleti bastante, e percebi o óbvio. "Ninguém". Não sei qual é o caso para os outros homens brancos, héteros, cis e de alta classe, não conheço nada além da minha situação, mas a mim, ninguém oprime. Não. De verdade. Eu estou bem.

Ah, com certeza, o patriarcado, por exemplo, me incomoda mais do que deveria. Claro, com certeza, sou confrontado com obrigações de performance. Com certeza, não devo mostrar minhas emoções porque boys don't cry. Claro, fui muito azucrinado durante a infância e a adolescência por ser uma negação com a bola (sempre fui), porque eu era o nerd de todas as classes que frequentei (não consigo escapar disso), porque eu era tímido (ainda sou), e porque eu não listava minhas conquistas femininas (não há ninguém, além de uma pessoa, que me interessa neste mundo). Houve até mesmo um cara que tirou sarro de mim em um restaurante, porque me entusiasmei demais com uma mousse de chocolate (eu adoro chocolate). Ele disse "parece uma menininha". Naquele momento, me irritei.

Se eu procurar bastante, posso até mesmo encontrar os casos onde foram as mulheres que me incomodaram desta maneira. Quando eu era adolescente, muito mais retraído do que hoje, ignorante das modas, inapto ao universo escolar sem originalidade, sempre houve meninas para me atormentar. E, sem dúvidas, para me rejeitar. Já vi caras se queixarem de "misandria" por coisas desse tipo. [Esta é] uma palavra que encontramos com facilidade por aí. Dizer que os homens se aproveitam da dominação sobre as mulheres? Misandria. Dizer que os homens não são oprimidos? Misandria. Não querer escutar um homem reclamando que é difícil ser homem num mundo de mulheres? Misandria. Sugerir que os homens são menos oprimidos que as mulheres? Misandria. As mulheres não querem sair com um homem? Misandria.

"Você não é oprimido."

Sim, eu sofri, e às vezes sofro por causa das normas de gênero. Mas isso não muda em nada o problema: ninguém me oprime. Ainda que eu sofra, ninguém lucra com isso. Em que medida as gozações que sofri no ginásio e no colégio por parte das garotas melhoraram a condição feminina? Em nada. Em que medida a obrigação masculina de arrolar as conquistas sexuais é benéfico às mulheres? Em nada.

Todas essas situações lamentáveis que pude viver [ocorreram] porque não me conformei, pelo menos não o tempo todo, com o meu papel de dominador. Elas são os custos da dominação masculina. Mas, precisamente, o custo é o seguinte: há algo a ganhar em troca. Estes custos são, antes de tudo, um preço: se me conformo a eles, ganho todas as vantagens de ser um dominador. Ganho a admiração alheia, o acesso a certos círculos, até mesmo o simples direito a ser ouvido. E, ainda assim, para [ganhar] muitas dessas coisas, não tive de fazer nenhum esforço. Para ser considerado alguém sério, ponho um terno e uma gravata, e ninguém se interessará por minhas roupas. Claro, não tenho liberdade de ir ao trabalho de saia ou de bermuda florida. Mas em troca dessas restrições, ganho credibilidade, legitimidade, poder.

E isso não tem nada a ver com aquilo que os oprimidos vivem. Quando se é oprimido, se está precisamente na situação em que se deve pagar um preço sem obter nada em troca, ou ser pago em dinheiro de mentira. Uma mulher que aceita jogar o jogo da feminilidade e se maquia de maneira perceptível (além disso, ela adora maquiagem, é divertido)? Ela sempre terá um babaca para lhe incomodar - "Ei, se você não quer ser incomodada, você não pode chamar a atenção". Ela deixa de fazer algo que ele gosta e aceita não se maquiar? "Ei, você não é feminina, você não se cuida, você não está bem, você está feia assim".

"Você não é oprimido."

E esta é a opressão, um jogo que mesmo quando você respeita as regras, você não pode ganhar. Poderíamos dizer a mesma coisa do racismo (mesmo que um cara me chame de "branco sujo" um dia, isso não me impede de ter acesso a um emprego), da sexualidade (se tenho medo que me tratem como um "veado" por não me vestir de maneira não muito "hétero", são os homossexuais que são oprimidos, não eu), ou mesmo da classe social (a exploração da mais-valia interessa a quem, em sua opinião?).

Sim, porque não apenas ninguém me oprime, mas além disso eu me beneficio da opressão alheia. Não concordo, acho vergonhoso e sou politicamente contra, mas possuo ainda assim uma vantagem prévia sobre minhas concorrentes femininas quando se trata de arranjar um emprego... E isso não é nada além da ponta do iceberg. Não sou oprimido, mas além disso, sou o opressor.

Vi muitos homens que se colocam a questão de qual é o seu lugar no feminismo. Faço parte deles. Refletimos sobre o que fazemos nele, reclamamos que não é fácil, discutimos sobre nós, nós, nós. Tentamos mostrar que somos gentis. E ocupamos muito espaço. Acima de tudo, o espaço da discussão. Talvez devamos procurar menos sobre qual é o nosso lugar em um movimento feminista que não nos esperava, e um pouco mais sobre qual é o nosso lugar no patriarcado. E a resposta é que nós somos os opressores.

"Eu não sou oprimido."

Não, sério, eu estou bem. Então, vamos falar um pouco de você?
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Texto original (em francês)

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Machista em recuperação

. . Por Caio Moretto, com 6 comentários

Olá, meu nome é Caio e sou um machista em recuperação.

Inicialmente fiquei bastante chocado com a quebra de santos na manifestação da Marcha das Vadias que ocorreu durante a presença do Papa no Rio de Janeiro. Passei alguns dias tentando entender de onde vinha minha indignação e se ela era legítima. Cheguei ao discurso de que o que mais me incomodava era que isso pudesse criar a imagem de que feminismo e cristianismo são incompatíveis e que isso pudesse fechar o diálogo do feminismo com as mulheres cristãs que tanto sofrem com o machismo praticamente institucionalizado pela Igreja. Minha própria culpa, porém, não permitiu que eu sustentasse essa argumentação por mais de uma noite. Ora, quando foi que eu dei qualquer passo dentro da minha Igreja para abrir o caminho ao combate contra machismo? Pois é.

Há alguns dias eu tenho pensado, então, qual deveria ser minha atitude após constatar esse fato. Resolvi ouvir as pessoas mais cristãs que eu conheço: os dependentes em recuperação dos grupos de ajuda mútua.

Desenho de Ziraldo a uma frase de Drummond.
Diz Freud que quando João fala do Frederico, eu aprendo mais do João do que do Frederico. É uma outra forma de dizer que toda crítica é uma forma de biografia. Pois bem, os grupos de ajuda mútua sugerem que façamos exatamente o contrário. Que toda nossa crítica seja feita através de nossa própria autobiografia e, quem sabe, a gente consiga apontar menos o dedo e mudar mais nossa personalidade e nosso mundo caduco. Talvez seja uma outra forma de dizer aquela frase que atribuímos a Gandhi de que devemos ser a mudança que queremos ver no mundo, talvez seja uma forma de dizer o que o Paulo Freire dizia com “ninguém liberta ninguém, nos libertamos todos juntos em comunhão” ou que palavras valem menos que exemplos. Pode ser tudo isso. Mas da forma como eu vejo o mundo hoje, esse é também o único método que encontrei, até agora, que me permite dialogar mais e julgar menos. E não é essa a base da fé cristã?

Muitos pastores e padres se perdem em lutas vãs contra a ciência, defendendo que o pecado original veio da busca pelo conhecimento. Não! Graças às lutas pelo direito de tradução e reprodução da Bíblia, hoje posso ler com meus próprios olhos e podemos conversar sobre possíveis interpretações. Não me venha dizer que religião não se discute e anular essa conquista! Eu leio em Gêneses, logo naquela passagem que todos conhecem, que Adão e Eva foram expulsos do Paraíso pois comeram o fruto proibido da árvore do conhecimento do bem e do mal. Mas conhecimento do bem e do mal não é ciência, é moral! O pecado original, aquele sobre o qual todos estamos cansados de ouvir, aquele que muitos teólogos utilizam para explicar “a queda” e toda a desgraça humana, não veio da ambição por conhecimento, veio da pretensão de que seríamos capazes de julgar.

Não custa lembrar quantas vezes já erramos o mesmo erro.


Mais de dois milênios se passaram e continuamos cometendo o mesmo pecado original. Mais do que isso, institucionalizamos o pecado original ao transformar nossa fé em dogmas. Cimentamos o Cristo em dogmas, de forma que ele sempre estará de costas para alguém. Os pastores e padres pregam preconceitos nos cultos e perpetuam o pior da tradição cristã (que nada tem a ver com Jesus). E eu, machista e covarde, ouço quieto, achando que é melhor não ofender o pastor enquanto as mulheres são ofendidas, enquanto gays são ofendidos, enquanto ele aponta o dedo para os outros e não para si mesmo e reforça os preconceitos dizendo reforçar os valores cristãos.

Eu, hipócrita, estava chateado porque quebraram representações de santos, imaginando que isso fecharia um diálogo, sendo que eu recuso esse diálogo diariamente ao não me posicionar. Poucos depoimentos feministas foram precisos para eu perceber que não, meu silêncio diante das palavras opressoras da minha própria Igreja não é gentileza, não traz harmonia, nem edifica a paz. Simplesmente porque a paz que ignora ou cala o oprimido não é paz.

No modo como eu leio a Bíblia, Jesus veio ao mundo e nos mostrou que Deus tinha um outro plano para o humanidade, que não se concretizou com Adão e Eva. Ele nos dá um exemplo de como viver o Amor indiscriminadamente, sem jogar a primeira pedra, sem julgar – crime que leva à expulsão do paraíso, como nos mostra a história dos primeiros exilados.

Obviamente, eu não serei a voz do feminismo em minha Igreja. Não pretendo nem posso sê-lo. Não há exercício intelectual que me permita sentir um centésimo do medo e dos constrangimentos aos quais uma mulher está submetida em nossa sociedade. Não há manobra de humildade que me desvincule de minha situação de privilegiado nesse mundo sexista. Não tenho como fugir disso. Mas posso reconhecer essa situação. E posso lutar pela mudança, ao lado de quem se propuser a fazê-lo. Por isso, hoje, ao invés de apontar o santo quebrado, começo me avaliando: sou um machista e homofóbico em recuperação.

Fecho meu testemunho copiando de outro grupo cristão meu pedido de desculpas. Desculpas às mulheres, homossexuais e transexuais que procuram a Cristo em minha Igreja e encontram meu silêncio e não meu acolhimento. Não compactuarei mais com o machismo e com a homofobia em minha Igreja. Basta. Ou somos todos iguais e todos pecadores em busca de Cristo ou continuaremos sendo apenas discípulos de Adão. Desculpe-me pela conivência do meu silêncio. Desculpe-me pelo atraso. Só por hoje.


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