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“As notícias de Pinheirinho são de revirar o estômago”
– Hugo Ciavatta
“Porque a legalidade nem sempre está ao lado da moralidade”
-Thaís Soares
Separar filhos dos pais e ameaçar a perda da guarda por causa da falta de moradia (que o próprio governo acabou de tirar); usar ação policial violenta dentro dos alojamentos criados pela própria prefeitura como solução emergencial à desocupação; usar farda sem identificação para atos de violência; não permitir o registro e sequer a entrada da imprensa no local; dizer que está tudo sendo feito para cumprir a lei e que não houve confronto quando há vídeos que provam o contrário. Que democracia é essa?
A Polícia Militar já provou que o Selo Pinochet de Direitos Humanos foi um prêmio merecido. A Folha de S. Paulo publicou esta semana que um em cada cinco mortos em São Paulo é vítima da PM. E todo mundo já percebeu que, mesmo assim, a receita de Kassab para governar a capital paulista é colocar o maior número possível de militares no comando das subprefeituras. Isso tudo sem falar da mal planejada e violenta ação na cracolândia.
Mas este não é mais um texto sobre a injustificável violência das recentes ações policiais. Quero falar de uma outra forma de violência menos comentada (como já escrevi em outro post, é dificil falar de outra coisa quando a barbárie arromba a porta) que se evidenciou na tentativa alckimista de se isentar da responsabilidade sobre a ação violenta no Pinheirinho, passando a bola para o judiciário e para a inevitabilidade do cumprimento da lei. Cortando as palavras difíceis, Alckmin diz que não havia o que ele pudesse fazer, pois era preciso cumprir a lei e que abusos serão investigados. Como se a brutalidade de nossa polícia não bastasse, o governador nos alerta, assim, sobre a violência impessoal de nossas leis.
As comparações de Alckmin com Hitler se multiplicaram na internet, obedecendo a lei de Godwin. Apesar do uso exagerado desse recurso, acho importante que a comparação esteja sempre à mente. O nazismo foi talvez o pior episódio de nossa história e devemos organizar todos nossos esforços enquanto sociólogos e enquanto seres humanos para impedir que ele se repita. A referência, porém, está desgastada. Assim, associamos rapidamente a comparação nazista à violência policial, mas não paramos para pensar nas outras formas de opressão que caracterizam um regime ditatorial. Por isso, apesar de toda análise carregar direta ou indiretamente uma proposta de transformação, acho que é interessante, em alguns momentos, tentar separar os métodos de militâncias, que valorizam mais a caricatura, dos métodos de estudo, que valorizam mais a análise.
Leo Strauss chamou de reductio ad Hitlerum a manobra de tentar invalidar um argumento dizendo que o mesmo era utilizado por Hitler. Nas palavras do sociólogo “é preciso evitar a falácia que nas últimas décadas tem sido frequentemente utilizada em substituição ao reductio ad absurdum: o reductio ad Hitlerum. Uma opinião não é refutada pelo fato de ocorrer que ela tenha sido compartilhada por Hitler”.
Não gosto de citar Marx, por motivo semelhante: não gosto de dividir o público por seus preconceitos acadêmicos. Sempre que Marx é citado, corre-se o risco de perder o interesse ou o foco leitor, que se distrai com discussões sobre a validade ou não do marxismo e a tentativa de rotular o escritor de marxista ou não-marxista, como se esses fossem os dois únicos carimbos que possuísse. Enfim, Marx rouba a atenção da discussão que se propunha originalmente – no nosso caso, a crítica ao argumento legalista na defesa da reintegração de posse no Pinheirinho. Por isso, antes de fazer a próxima citação, peço que todos nos empenhemos em evitar um possível reductio ad Marxium. Se mesmo assim o leitor não conseguir ler a citação com alguma dose de imparcialidade, substitua-a por algum trecho da mais anarquista e antropológica Origem da desigualdade entre os homens, de Rousseau, ou procure outro pensador. O argumento que quero mostrar aqui não é exclusivo nem original de Marx e não quero abordar as propostas de ação por ele propostas. Portanto, não precisamos ser marxistas (seja lá o que isso signifique hoje) para concordar com a ideia de que a lei não é neutra e não garante a igualdade entre os homens. A citação do 18 Brumário de Luís Bonaparte, contudo, traz sutilezas interessantes e é a única à qual minha pouca erudição foi capaz de recorrer neste momento.
O inevitável estado-maior das liberdades de 1848, a liberdade pessoal, as liberdades de imprensa, de palavra, de associação de reunião, de educação, de religião etc., receberam um uniforme constitucional que as fez invulneráveis. Com efeito, cada um dessas liberdades é proclamada como direito absoluto do cidadão francês, mas sempre acompanhada da restrição à margem, no sentido de que é ilimitada desde que não esteja limitada pelos “direitos iguais dos outros e pela segurança pública” ou por “leis destinadas a restabelecer precisamente essa harmonia das liberdades individuais entre si e com a segurança pública. (...) A Constituição, por conseguinte, refere-se constantemente a futuras leis orgânicas que deverão pôr em prática aquelas restrições e regular o gozo dessas liberdades irrestritas de maneira que não colidam nem entre si nem com a segurança pública. E mais tarde essas leis orgânicas foram promulgadas pelos amigos da ordem e todas aquelas liberdades foram regulamentadas de tal maneira que a burguesia no gozo delas, se encontra livre de interferência por parte dos direitos das outras classes. (...) Como resultado, ambos os lados invocam devidamente, e com pleno direito, a Constituição: os amigos da ordem, que ab-rogam todas essas liberdades, e os democratas, que as reivindicam. Pois cada parágrafo da Constituição encerra sua própria antítese, sua própria Câmara Alta e Câmara Baixa, isto é, liberdade na frase geral, ab-rogação da liberdade na nota à margem. Assim, desde que o nome da liberdade seja respeitado e impedida apenas sua realização efetiva – de acordo com a lei, naturalmente – a existência constitucional da liberdade permanece intacta, inviolada, por mais mortais que sejam os golpes assestados contra sua existência na vida real.
A estratégia de buscar na necessidade do cumprimento das leis a justificativa e a isenção moral para a brusca retirada dos moradores do Pinheirinho de suas casas é colocada em xeque com a simples pergunta: “e o direito à moradia?”. O argumento foi resumido criativamente com as seguintes palavras de ordem: “quando morar é um privilégio, ocupar é um direito”. Eis o centro da questão. Há direitos que valem mais do que outros. Por que o governo não se vale do mesmo empenho utilizado na retirada das famílias para garantir a moradia digna àqueles que acusa de invasores e ocupantes? Os dois lados poderiam, como vimos no trecho citado, invocar a Constituição com pleno direito. Os retirados já não o fazem, pois sabem na prática que a lei não é neutra. O direito de moradia é liberdade genérica e não vale nada.
Cumprir a lei e investigar os abusos seria uma resposta bastante satisfatória numa situação ideal. Numa situação de desigualdade garantida por lei, ela é inaceitável. Como disse Boechat, “a lei está errada!”. A lei não é aqui senão o próprio abuso, a solidificação das desigualdades. A violência do Estado é manifesta em suas leis tanto quanto em suas ações violentas.
"Todo destino, por longo e complicado que seja, compreende na realidade um único momento: aquele em que o homem descobre, de uma vez por todas, quem é" (Borges, em "Biografia de Tadeo Isidoro Cruz", El Aleph)
Nunca, sem desmedida, havia me sentido daquela forma. Quando criança, o mais próximo que passava por uma situação assim era quando meus pais me levavam para hospitais, médicos, exames, clínicas, e lá estavam outras tantas pessoas esquisitas. Mesmo assim, era mais do que comum, sem perder a curiosidade, ver as mesmas esquisitices alheias: desejos por formas e novas caras, bocas, curvas, ou a ausência delas. Gente nova, velha, criança, homem, mulher, não importava, era uma esquisitice normal pra mim. Hoje, vejo aquilo como um encontro inusitado de estatísticas na sala de espera, pelo menos ali, naqueles espaços e naquela época, certa cumplicidade era compartilhada silenciosamente, mesmo que entre nós não existisse a mesma condição, já que alguns haviam escolhido estar ali, outros nem tanto, talvez alguém mais próximo tivesse escolhido por eles. O sentimento confuso, no entanto, me acometia depois dessas salas de espera, quando ouvia as mesmas perguntas, "tá ouvindo? tá sentindo? e agora?", e os mesmos pedidos, "vire a cabeça; dobre o pescoço; tente movimentar do mesmo jeito, só que agora do outro lado". Enfim, cresci e pode até ser divertido fazer e ouvir isso tudo de novo.
Ah, devo lembrar, claro, aquela vez em que caminhando pela rua, já na faculdade, fui parar no hospital. A surpresa até hoje é um mistério, porque eu estava andando até o aniversário de um amigo quando um inseto - dragão, duende, jacaré, leão, dinossauro, nunca vou saber - mordeu, picou minha perna. Doeu muito na hora, pulei, me virei e não vi nada. A marca logo atrás e abaixo do joelho foi crescendo, crescendo, até que no final da tarde eu já não conseguisse colocar o pé no chão. No corredor do pronto (sic) atendimento, enquanto eu era transferido de sala de espera em sala de espera, e depois de passar pela vagarosa sala de recepção, na primeira passagem daquela moça, não vou me esquecer, depois confirmamos, já havíamos nos reconhecido. Restava aquela pequena dúvida boba, "mas será mesmo?...?", coisa que um simples cruzar de olhos resolveria em seguida. Na terceira vez em que ela passou, não resistiu, como trabalhava ali, parou pra me perguntar, "viu, e o que você está esperando aí?". Enquanto ela pronunciava cada uma das sílabas da frase, nossos olhos se espelhavam: ela era eu, eu era ela. Já havia presenciado cenas de ciúmes, mas a que causamos foi uma das mais constrangedoras pra mim até hoje. Ela parou pra perguntar o que eu esperava, emendou o que ambos já sabíamos e em poucos minutos éramos íntimos um do outro. Tínhamos pequenas diferenças em nossa absurda convergência, mas nada demais, e ríamos justamente disso quando outro rapaz, que pra mim só poderia ser o namorado dela - e mesmo que fosse o marido, seria pior, que cara chato -, chegou amarrando a testa. Estávamos em um hospital, oras, é bom lembrar, eles trabalhavam ali, eram aprendizes de doutores, mas a insistência dele em colocar-lhe a mão, em lhe apertar, repetir gestos de abraços, carinhos, tentativas de beijos foi tão grande que ele conseguiu, sai de perto logo: muitos gravemente enfermos no corredor não precisavam saber que "ela era dele", mesmo porque, que sujeito infeliz, ela jamais iria ser. Depois de atendido por um especialista em casos que desafiam a medicina, ganhei uma receita para ir a farmácia, fui dispensado e, por fim, ela e eu nos encontramos na saída, mas apenas nos despedimos entre um sorriso e um aceno.
Só que naquele dia, já fazia muito tempo desde essa última vez, havia acordado com um barulho estranho nos ouvidos, não sabia se vinha de fora, do trânsito nas ruas, afinal já era claro o dia e mais do que rotineiro haver muito barulho seis andares abaixo, ou mesmo se era um susto qualquer vindo de um sono intranquilo, outra das coisas comuns que me acontecem. Não, não podia ser taquicardia, era cedo demais pra que já o corpo estivesse reagindo ao excesso de um vício besta como o de café, que ainda sequer tinha imaginado fazer. Tampouco poderia ser a repetição da voz daquela moça pronunciando meu nome ao preencher um formulário atrás do balcão. Era uma moça no caixa, por favor, eu jamais voltaria a vê-la, que tolice romântica, era a mais absurda obsessão tomando conta de mim, não poderia ser, claro. Alguns segundos e a confusão de pensamentos deu lugar a certeza de que, sim, era um despropósito começarem uma reforma no piso superior às sete da manhã. Tanto melhor, minutos depois eu já pensava, pois precisava mesmo trabalhar, e muito. O computador me esperava e com ele veio um dia nada produtivo, que na escala das coisas a serem feitas conseguiu atingir uma marca negativa. O tempo, obviamente, não retrocederia, e um prazo para entrega de um trabalho já tinha ficado para trás.
Caminhar pelas avenidas ao redor, no bairro, sair de casa pelo menos me ajudaria, imaginava, a fazer com que a passagem de pessoas, de automóveis, de cores, o vento, enfim, que o movimento lá fora me desanuviasse. Não me imagino um coitado, se percebo que me tratam assim fico irritado, se percebo que me tratam com certo apreço que não sei nomear, como se eu fosse "diferente" mas não inferior, também me contrario, não quero ser nada além do que sou, ponto. Infelizmente, às vezes reparo, e percebi, há uns bons metros de distância, que aquele homem lá na frente, no meio de um monte de gente, não tinha a mão esquerda. O esmalte da mulher à minha esquerda também não combinava com o vestido. Não fiquei olhando, não vejo nada demais em olhar, não me incomodo quando acontece comigo, se fosse me incomodar, também, convenhamos, estaria enrascado, só não sei o que as outras pessoas, cujos esmaltes não combinam, podem pensar. Ainda bem. Mantive o passo, não mudei de direção, quando estávamos próximos senti que o rapaz sem a mão também percebera. Confirmei rapidamente, como quem confere se vem carros do outro lado da rua pelo canto dos olhos, ele me olhava.
É engraçado, às vezes, nos reconhecemos muito longe um do outro e encontros desse jeito acontecem a toda hora. Logo percebo um desvio de rima labial mais acentuado, nas maças do rosto ou nas sobrancelhas. Em algumas situações, é desconcertante não saber se se é analisado, observado, ou apenas olhado (des)pretensiosamente. Contudo, não soube nomear - por que precisava? pois assim faço o que se faz por aí afora, pela comparação descabida me autoelogio -, então achei que era a casualidade mais banal possível, o encontro de duas estatísticas novamente, como no corredor do hospital naquela outra vez, ou nas salas de recepção da infância. Nesta, na esquina seguinte a do rapaz sem uma das mãos e da mulher de esmalte errado, o susto daquele homem virando a esquina e tendo apenas a mim diante de si, e eu a ele diante de mim, mesmo em meio a centenas de pessoas ao longo da avenida, revelava o Mal de Van Gogh nos nossos olhos. Este é um mal que ainda carece de investigações na literatura médica de botequim para ser melhor representado, mas que por enquanto tem apenas no nome uma identificação que diz o suficiente para aqueles que por ele são acometidos. E somos muitos, é verdade, mas nenhum dos meus encontros com um deles havia sido tão chocante até então. Naquele mesmo instante, o Thiago coçava a cabeça na frente do computador, o Fernando dava de ombros e balançava a cabeça em afirmação à pergunta da estagiária, o Fábio desenhava e apagava e desenhava de novo no meio da reunião, e o Caio, ah, ele tinha a quinta ideia brilhante do dia. Seguramente, também, naquele momento nascia uma nova Amélie. Nunca o tinha visto, nem quero mais voltar a perceber a presença daquele homem. Foram os segundos mais terrificantes de nossas vidas. Ele era eu, eu era ele. Ele tinha óculos desajustados, roupa social velha, amarrotada e - me perdoe, Adriano - era careca. Não era gordo nem magro, era barrigudinho. Carregava um livro nas mãos, tinha a mesma estatura que eu e, também, levava o rosto embexigado. Ele viu, mais ou menos vinte anos e pouco mais de um metro nos separavam. Era sua orelha direita, era a minha esquerda, nos complementávamos. O semáforo para pedestres iria se fechar, não podíamos parar, mas não importa para que lado eu vá, o que quer que eu faça a partir daquele momento, ou daqui por diante, pois eu serei ele, um dia, ele também foi como eu.
“O mundo era tão recente que
muitas coisas careciam de nome
e para mencioná-las se precisava
apontar com o dedo”
(Gabriel García Márquez)
A nossa relação não fugia do padrão visto por aí. Passamos e superamos juntos inúmeras fases: algumas eu te dando mais liberdade do que em outras. Se por um tempo eu te controlava e manipulava diariamente e por outro eu te dei liberdade ampla e irrestrita, atualmente havíamos encontrado o meio termo razoável em que você podia expressar sua essência sem afetar a minha. O importante era que sua presença me dava confiança e mesmo com os reveses nunca deixamos sucumbir a nossa parceria incondicional.
O tempo foi passando e você, aos poucos, me deixando. No começo eu negava e achava que era só uma fase, afinal não havia motivos para um fim assim tão repentino. Porém as suas ausências aumentavam: bastava ver as fotografias, cada vez menos aparecíamos juntos. Toda manhã, na minha cama ou no banho, apenas rastros do que você foi outrora.
Era uma questão de lógica. Mais do que isso, era uma norma: as pessoas mais experientes sempre me indicaram que nossa relação não seria eterna. Mesmo assim, contrariado dessa fatalidade, nutria em mim a esperança de que com a gente duraria mais. No fundo eu tinha a certeza de que conosco seria diferente assim como aqueles velhinhos que conseguem manter a relação firme até o último suspiro.
Infelizmente a escolha não era minha e a sua decisão de me abandonar era um fato consolidado. A minha vida não era mais igual, até atividades mais ordinárias não tinham a mesma graça sem você. Tive que mudar meu vestuário. Passei a sair menos e até mesmo me esconder por sua culpa. Sentia vergonha, confesso.
Ainda não sei se era covardia sua ou preocupação com a minha reação, mas ao invés de sair por completo da minha vida você foi progressivamente se ausentado na espera que eu tomasse a iniciativa. Hoje, finalmente determinado, rompi por definitivo as nossas amarras e mesmo que nostálgico posso dizer: adeus cabelo, foi bom enquanto durou, pelo menos agora sei que a calvície me acompanhará para sempre.
Adriano Godoy é mestrando em Antropologia pelo IFCH/UNICAMP, parceiro de boteco no Beco Livre, escrevendo também em Livres Escritas. Mas Adriano não tem dificuldade, como muitos de nós, de admitir: está careca!