Um filósofo certa vez disse – e se não disse, deveria ter dito – que, no fundo, as únicas perguntas realmente importantes são aquelas que podem ser formuladas por uma criança. Esta pequena crônica é sobre a simplicidade das crianças e sua infinita capacidade de nos surpreender com ela. Prometo me esforçar – mas não muito, afinal, devemos evitar a fadiga! (*ver notas no fim do texto) – para desviar do assunto principal somente o necessário – o que quer que faça do necessário, necessariamente, o necessário.
Neste semestre, em que minha filha mais velha se encantou com os dinossauros; com o Justin Bieber [nem tudo sai como o planejado, nesta vida de meudeus!]; e com os astronautas, calhou de eu ser apresentado na condição de aluno à excepcional figura do Professor Laymert (**) em seu pouco óbvio curso sobre amor-ódio-tecnologia-dominação-capitalismo-política-economia-guerra-greve-crise-universidade-ciências-sociais-e-tudo-o-que-mais-aparecer-pela-frente [afinal, como diria o centro-avante: pipocar, jamais!]. Não pude resistir a contar pra ela que às quartas pela manhã o papai ia pra escola pra estudar sobre os astronautas. Tento – sempre que minha torta moral cristã assim mo permite – mentir pra minha filha dizendo que é possível estudar coisas legais e de um jeito legal na escola, esperando que ela sofra as desilusões dela por ela mesma, ou, tanto melhor, que encontre professores doidos e criativos o suficiente para subverter a chatice institucionalizada em forma de (manicômio?) escola (***).
Estava menos ou mais preparado para explicar pra ela sobre a corrida armamentista e a Guerra Fria; os porquês e os comos da exploração espacial; sobre as conseqüências psicossociais do confinamento dos astronautas na estação espacial; sobre a metáfora consubstanciada na figura do herói no imaginário social do século XX; ou sobre os limites e as possibilidades de subversão do uso da tecnologia espacial no contexto pós-contemporâneo universal; e sobre mais um monte de perguntas com as quais eu me acostumei a fazer/responder [mais responder que fazer] aqui nesta dita Academia [a escola do papai]. Grande coisa. Eu não estava preparado para responder à única pergunta que ela queria que eu – pai, oráculo, especialista – respondesse:
– Papai, como os astronautas fazem xixi e cocô?
(site tecmundo: "Como funciona um banheiro no espaço")
Tenho que confessar (****): a pergunta, de tão simples, não tinha nem passado pela minha cabeça. E olha que não foi por falta de aviso. Dentre as infindáveis possibilidades reflexivas que partem dos pouco ortodoxos vídeos escolhidos pelo Professor Laymert para nos provocar, esta certamente estava ali, tão óbvia que sequer pudemos conversar sobre ela. Estavam ali os astronautas – ou cosmonautas, dependendo de quem os mandou pra lá – brincando com as gotinhas de Coca-Cola; com aquelas pseudo-comidas pastosas; com os cabelos recém-cortados a pairar no ar indiferentes às leis e às forças da gravidade (*****). O que chamou a nossa atenção foram as complexas questões da filosofia aliada às condições de gravação e edição de imagens em contextos de dificuldades exageradas.
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É claro que eu falei pra ela que eu não sabia como os astronautas faziam xixi e cocô, mas que ia pesquisar e depois contava (******). É mais claro ainda que eu – postergador profissional que o sou – adiei isso um monte – um pouco pra criar nela a expectativa e um muito porque esquecia e/ou tinha preguiça. O que tudo isso me fez pensar e alterou profundamente o modo como voltei para os vídeos do Faroqui exibidos pelo Professor Laymert é que, no espaço, como aqui na Terra, os grandes problemas não são os que exigem as mais complexas tecnologias e os maiores investimentos, mas os problemas mais simples, mais cotidianos, os problemas que as crianças são perfeitamente capazes de formular: O que comer? O que beber? O que vestir? Como amarrar o tênis? Como fazer xixi e cocô? Tem algo babando embaixo da cama?
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Depois, eu fiz a pesquisa e até contei pra ela. Não me surpreendi que ela achou a resposta meio brochante e não entendeu direito o que era gravidade, e – muito menos – porque os astronautas têm que fazer xixi e cocô numa mangueirinha que puxa o xixi e o cocô pra dentro de uma cápsula [ela adorou essa palavra] que eles guardam para trazer de volta pro planeta Terra quando voltam. Ficou revoltada quando eu disse que, às vezes, se a volta demorar demais, eles têm que jogar essa cápsula no espaço [– Que porcalhice!] e que ela é atraída pela órbita da Terra e explode que nem estrela cadente.
– Estrela cadente de cocô (*******)??
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Essa história de cocô de astronauta me fez lembrar daquele causo – pra mim, o melhor causo de astronauta de todos os tempos – de que ao constatar a impossibilidade das canetas usuais escreverem na ausência de forças de gravidade, os estadunidenses gastaram milhões de dólares para desenvolver uma que escrevesse no espaço, debaixo d’água, no meio de um furacão ou de uma erupção vulcânica. Já os russos, conta o causo, usaram lápis.
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A mim, pouco me importa se o causo é verdadeiro ou não. Estou nessa [e em muitas outras] com Adoniran Barbosa, que se inventou uma pá de veiz: – Se o meu inventado for melhor que sua história, eu fico com o meu inventado e você que fique com a sua história.
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Mas confesso que, ingenuamente, como se ainda fosse uma criança – quem me dera! –, fiquei pensando... Bem que eu gostaria que toda a merda feita pelos homens e pelas mulheres pudesse ser mandada pro espaço. E melhor ainda se virasse estrela cadente.
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Qual foi o seu pedido, meu amor? (********)
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Notas
* Neste texto, astericos são notas de rodapé, portanto, são fundamentais à leitura, volte sempre aqui.
** Por favor, senhor editor, não cometa o despropósito de inserir aqui um linque para (a capivara virtual?) o lattes do Professor Laymert. Se for necessário para atender às linhas editoriais da sua (Feitoria?) Editoria, escolha algum “lugar” menos deselegante.
*** Jornal do CAECO (Centro Acadêmico de Economia), IE (Instituto de Economia), UNICAMP.
**** Com efeito, não tenho. A folha está em branco e eu poderia digitar o que quisesse, mas adoro essa técnica literária de demonstrar fraqueza ante @ leitor@. De algum modo el@ gosta de ver a fragilidade do escritor e a sua submissão @(o) leitor@, que pensa que é muito mais importante que o escritor. Aliás, é mesmo. [Viu como funciona?] Se você ainda se lembrar do que trata o texto, tiro pra você o meu chapéu e o convido a voltar à leitura no ponto por mim interrompido para essa gostosa [para mim] e completamente desnecessária digressão ao final da qual fica demontrado que, por mais importante que o leitor seja, qualquer escritorzinho de meia tigela é capaz de manipulá-lo, forçando-o a segui-lo ou a abandonar o texto imediatamente. O que, definitivamente, quero que você não faça e, portanto, volto ao texto e você volta junto comigo.
***** Curioso como longe da gravidade [nota para a ironia!] a primeira reação de todo mundo parece ser o sorriso. Ou é isso o que nos fazem acreditar os editores de imagens de astronautas, não sei dizer.
****** Recurso mais ou menos (picareta?) verdadeiro que todo professor de crianças precisa aprender a utilizar muito rapidamente para sobreviver numa sala de aula em que a um clique se pode saber o nome do pai de Tutankamón ou com quantos paus se faz uma canoa. Apesar de que ainda hoje me pergunto sem saber a resposta se, neste sentido, o professor não se tornou, de fato, um artigo mais obsoleto que o giz sobre o quadro negro.
[ps: quando criança, nunca entendi porque chamavam lousa verde de quadro negro e até hoje ainda não sei, mas parei de me perguntar. Me venceram. E eu nem sequer sei quem eles são. Mas sei – se é que serve de consolo – que “eles”, nessa oração, são um sujeito muito indeterminado.]
[ps: quando criança, nunca entendi porque chamavam lousa verde de quadro negro e até hoje ainda não sei, mas parei de me perguntar. Me venceram. E eu nem sequer sei quem eles são. Mas sei – se é que serve de consolo – que “eles”, nessa oração, são um sujeito muito indeterminado.]
******* Aliás, minha filha mais nova achou essa coisa de estrela cadente de cocô de astronauta muito engraçada e até hoje me pede para contar essa história pra elas e quase morre de rir, mesmo depois de eu ter contado cerca de 1039 vezes exatamente a mesma história, como, aliás, elas exigem. Jamais tente mudar uma história contada pra uma criança. Ela quer ouvir exatamente do mesmo jeito que você contou da outra vez, o que faz com que seja praticamente impossível inventar de cabeça – por que depois não dá pra lembrar di-rei-ti-nho – e constitui a principal razão de ser de livrinhos de historinha e da permanência em nosso imaginário de histórias ancestrais como a chapeuzinho vermelho e a branca de neve e os sete anões – que nem são tão boas assim, vai...
******** Se o leitor habituado a frequentar esse blogue pensar que o final foi feito pelo Hugo Tia Vatta, saiba que não foi. Mas fica a ele por mim dedicado. Na minha opinião, orna com o seu modo todo meigo de escrevinhar quando não fica com chatices antropologéticas.
Thiago Fernandes Franco é recém ingressante no doutorado em História Econômica, no IE/ UNICAMP, mas hoje é só o "papai Peixe".