VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Calça cor de rosa

. . Por Unknown, com 0 comentários



Ela não se parecia com qualquer pessoa que eu já tivesse conhecido, era como se ela estivesse desencaixada, desconectada, descontextualizada de tudo ao redor. Eu a olhava, conversávamos, passamos aquele dia praticamente todo juntos, da manhã ao final da tarde, e ela era como uma personagem de um quadro cujo ambiente não faz sentido, como se as cores, as coisas, as pessoas, nada lhe desse significado. Ela e eu tínhamos feito uma prova, dessas de colégio particular, para concessão de bolsas, uma imitação de vestibular, mas para cursar o ensino médio. No fim do dia, em casa, sozinho, tentando entender o que tinha acontecido, mesmo abobado de encantamento eu disse a mim mesmo: “idiota, ela veste uma calça rosa, uma calça rosa de um mundo cor de rosa: você só pode estar de sacanagem, Hugo”. Foi em setembro, dezesseis anos atrás.
Não fomos bem naquela prova, mas, coincidentemente, fomos para o mesmo colégio meses depois. Ela estudava de manhã, eu, à tarde. As aulas de inglês, no entanto, eram fora da grade normal: as minhas, na sexta-feira de manhã, as dela, nas tardes do mesmo dia. Nos encontrávamos nos intervalos de cada período, ou na hora do almoço. Não era marcado, a gente simplesmente se cruzava, parava, conversava um pouco, às vezes se sentava num banco no corredor. Claro, depois de algumas vezes, comecei a repetir os horários, os corredores, os bancos, eu queria encontrá-la sempre, e mais do que nunca às sextas-feiras. Ela não vestia mais aquela calça rosa.
Eu já tinha ouvido falar de borboletas no estômago, o que eu sentia, contudo, estava longe da leveza, da delicadeza do bater das asas, da suave confusão das borboletas. Era como se um passarinho aprendendo a voar estivesse numa caixa de sapatos dentro de mim. Ela falava de maneira despreocupada e, ao mesmo tempo, parecia atenta e séria, como quem está concentrada nas coisas, porém, com naturalidade, sem fazer disso esforço, cansaço. Num instante, sorria, um riso franco, largo, arregalado. Ela conseguia deixar o ar atento e ser invadida com surpresa pelas coisas, sorria seu sorriso como criança que tenta esconder a própria timidez desviando o olhar mas fracassa, deixa escapar o riso.
Nos intervalos das sextas-feiras, bandas de alunos do colégio se apresentavam no pátio. A música, as canções e as bandas eram quase sempre nossos assuntos. Ela e eu tínhamos gostos parecidos. Foi por ela, em silêncio, que dei uma versão para versos que sempre me pareceram esquisitos, “A tempestade que chega/ É da cor dos teus olhos/ Castanhos”. Numa cidade quente e seca, apenas uma tempestade cujo vento levanta e carrega areia e terra poderia fazer com que o céu tivesse a clareza do castanho que os olhos dela tinham. Ela e eu gostávamos de Led Zeppelin, e Pink Floyd não era exatamente do gosto dela. Foi ela quem reparou o quanto eu gostava de coisas lindas, mas muito tristes. Ela também gostava de Guns N' Roses, afinal, chega a ser óbvio agora, ela tinha uma calça rosa.
Desde aqueles dias, mantenho bem a postura de simpatia en passant, todavia, me embaraço em demonstrar sentimentos e entender relações que envolvem alguma cumplicidade. Pra mim, de toda forma, era bem claro que ela não queria nada comigo além daquelas conversas ocasionais sobre as bandas e sobre as matérias e provas. Quando eu conseguia, lia romances que apareciam em artigos no jornal de domingo, referências clássicas, coisas que a professora de literatura citava como fundamentais, mas que não eram cobrados como leitura obrigatória, ou como preparação para o vestibular. Eu nunca falava sobre isso, eu morria de vergonha, ainda mais com ela. No português, ela tinha facilidade com as regras gramaticais que, pra mim, sempre foram um aborrecimento. Eu era bom de matemática também, a ponto de ter feito olimpíadas regionais, ela, saia-se fácil das equações, reações e elementos químicos. Enfim, se tivesse que puxar um assunto novo, falaria de futebol ou de videogame. Ela era do vôlei, mas falar sobre a segunda divisão do estadual de futebol não me parecia a dela. E mesmo tendo um irmão caçula, ela estava longe de estar interessada no FIFA 2002. Ela era um absurdo pra mim. Desconfortável, é verdade: oras, sentir-se uma caixa de sapato vazia movimentada pelo desejo de liberdade e voo coisa boa não poderia ser. Ou era, ou foi. Eu não conseguia entender, e não conseguia fazer nada além do que já acontecia.
Ela queria estudar Medicina, eu, Engenharia Aeronáutica. Mas não sei onde estava Saturno naquela época, quais ciclos ocorriam, quais se fechavam, quais se abriam. Não sei também que planetas habitavam a constelação de Sagitário. Sei apenas que os números, pouco a pouco, começaram a me escapar, e além dos romances eu comecei a ler Salário, Preço e Lucro, A Guerra Civil na França, Ciência e Política – Duas Vocações, e nossos horários mudaram. Nos anos seguintes, não nos encontrávamos mais semanal e regularmente. Vê-la ficou raro, mal nos cumprimentávamos no fim do colegial e, de repente, agora, eu sequer consigo me recordar se a vi nos últimos doze anos. Evidentemente, como sempre, ela pode vestir o que ela quiser, ela pode até continuar gostando de Guns N' Roses, me pergunto somente se, médica ou não, hoje em dia ela ainda tem uma calça cor de rosa.

terça-feira, 9 de maio de 2017

A gente pode balançar o céu?

. . Por Fábio Accardo, com 0 comentários




- Tio, você não tá vendo porque você tá aí parado no chão. O céu tá balançando! A gente tá aqui balançando, e toda vez que a gente balança, a gente balança o céu e o céu balança a gente!

As três meninas se divertiam no balanço do pré-assentamento. E iam cada vez mais alto. Riam e olhavam o céu. Eu sorria e olhava elas. Aquele vai e vem. Será que o céu balançava mesmo? Meu mundo tão parado não conseguia chegar tão longe. As três tinham um consenso. O céu das três balançavam. Não havia lugar para dúvidas.

Em dias de golpe, reformas e crise, a gente se perde nas amarras e sente que o mundo parece girar sozinho. As três pequenas, diferentemente, me fizeram lembrar Chico Science e de Siba, dois cantores pernambucanos, quando disseram "um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar" ou "toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar".

Elas três me lembraram que o mundo não gira sozinho. Ele pode girar pra onde a gente quiser.

...mas não dá pra ver isso enquanto a gente tiver ali, parado no chão.

domingo, 12 de março de 2017

Azeitonas

. . Por Unknown, com 0 comentários



Gosto muito de pão de queijo, porém, já faz mais de um mês que vivo sem qualquer mordiscada, estou sem derivados de leite na minha alimentação. Não tem nada melhor, no meio da tarde, que aquele pãozinho quente com manteiga, é verdade, mas também já entrei no segundo mês sem alimentos que contém glúten. Vontade eu até tenho, de vez em quando, daquela cervejinha, nada pra dizer, meu Deus, estou desesperado. Aprendi isso quando deixei de comer carne, quase quatro anos atrás. Até hoje reconheço o cheiro bom de carne de panela com batatas, por exemplo, no entanto, passou a ser indiferente pra mim, não tenho vontade. Glúten, derivados de leite, e também ovos, eu estou deixando de comer - ao contrário de carne, por opção -, por recomendação médica. Felizmente, por enquanto, ninguém mirou nas azeitonas: imagine só, além de tudo isso, ficar ainda sem azeite, sem azeitonas pretas: ah, não!

Tem uns quatro, cinco meses, estou com dermatite. Passei por três médicos diferentes, fiz uma porção de exames, experimentei medicamentos também diferentes e, diante do diagnóstico inconclusivo - francamente, medicina ocidental, séculos de empiria, testes, avanços tecnológicos, e quando não é virose, é inconclusivo, francamente! -, o mais provável é que eu seja um sujeito atópico. Faz cerca de cinco meses, de repente, misteriosamente, cabrum, meu corpo resolveu deixar de ter alergias respiratórias, meus anticorpos migraram para a derme. Começou nas pernas, foi para as costas, para as mãos, para os pés, pelo corpo todo, são pequenas bolinhas vermelhas, como cravos. Agulham, coçam, irritam. Vieram também manchas vermelhas, sensação de arrepio, pele ressecada. Ou seja, era mais legal ter umas crises de bronquite, asma, rinite, e viver por aí espirrando.

Ao longo desses meses, minha relação com meu próprio corpo tem mudado. Antes, entendia eu e meu corpo como uma viagem de avião. Minha primeira viagem, quando eu tinha uns cinco, seis anos, foi quando meu pai presenteou minha mãe com um voo pela cidade, num monomotor pequenino. Sentado naquela poltrona desproporcional pro meu corpo de então, o cinto afivelado, aquela geringonça chacoalhava no alto, saltitava: eu flutuava entre a poltrona e o cinto. Assim eu me entendia, durante esses anos todos antes da dermatite, eu flutuava dentro de meu próprio corpo.

Dos últimos meses pra cá, diante da irritação na pele, da coceira, tem sido como se a todo momento eu quisesse me desfazer de mim mesmo. Como se estivesse me despindo, coçando, retirando a vestimenta que minha própria pele me dá. A sensação de flutuar dentro de meu próprio corpo deu lugar a uma inquietação centrífuga - meu Deus, que metáfora tenebrosa, Hugo -, sou eu uma melancia quadrada. Sim, que ideia ridícula tiveram, algum dia, colocar uma melancia para crescer em um cubo de vidro. É como se eu-melancia quisesse quebrar o cubo que é minha pele, ressecada, vermelha, empolada.

Lembrei das azeitonas porque, em meio às coisas que tenho retirado da minha alimentação, as frutinhas das oliveiras nem sempre estiveram presentes, e tem relação com o sentimento infantil de como entendia meu corpo e eu. Só voltei a comer azeitonas perto dos vinte anos, cerca de dez anos atrás. Senhora minha mãe é quem conta que eu comia muitas azeitonas quando pequeno, de que comia especialmente com meu avô materno, o Gordo. Ele pegava um prato, sentava para comer, para almoçar, para jantar, na mesa da cozinha, eu vinha, subia no colo dele, olhava o prato e pegava as azeitonas. Ora, entendi, depois de muito ouvir essa história das azeitonas com meu avô, que um dia o velho Gordinho se foi, não me avisaram, não me contaram, não me disseram nada, se eu comia azeitonas especialmente no prato dele, na ausência dele, ué, inconscientemente, não fazia sentido continuar comendo.

Da morte de meu avô a eu redescobrir as azeitonas foram mais ou menos quinze anos. Do meu corpo pedindo para não comer nada que contenha glúten, ovos e leite - espero que tenha parado por aí -, nesses quatro, cinco meses, eu só consigo pensar em qual é o luto que eu estou elaborando, quais as perdas. Talvez seja luto sobre mim mesmo.


   

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Humans of minha rua

. . Por Unknown, com 0 comentários



Tem uma dupla de senhoras que vive no quarteirão de casa. Uma delas vive numa casa mais acima, outra, mais abaixo da minha. Quando saio de casa, é comum encontrá-las pela calçada, ora uma está na casa da outra, ora a outra está na casa da uma. São duas velhinhas muito amigas. Quando estou em casa, muitas vezes estou na mesa da garagem com o computador, com um livro, ou simplesmente fazendo vários nada olhando para o vazio - sou muito bom nisso, aliás -, é comum que uma delas, ou ambas, cruzem a minha calçada. Não importa o momento, todas as vezes, irresistivelmente, eu as cumprimento de maneira efusiva, separo meu melhor sorriso, meu aceno mais empolgado, minha felicidade mais contagiante e dou bom dia, boa tarde, boa noite. Todas as vezes, rigorosamente, elas me olham nos olhos, às vezes olham uma para a outra, e não reagem em relação a mim, me ignoram solenemente. 
Temos uma sintonia perfeita.

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

O micaretômano

. . Por Unknown, com 0 comentários



Lá vem ele, de tênis e sem meia, bermudão tactel, na mão leva um copo de plástico, uma latinha, ou uma long neck, que seja. Veste ainda óculos escuros, de dia, de noite, óculos escuros na chuva, não importa, óculos escuros. Está sem camisa, ou com o abadá alaranjado do bloco da vez: o obcecado por micaretas anseia pela chegada do Carnaval. Depois de arrastar o ano atrás de qualquer trio elétrico fora de época, mal acabou o Réveillon e ele já substituiu a piada do pavê pela pergunta, e o Carnaval hein? O micaretômano não sabe se vai para uma praia, se prefere uma cachoeira por perto durante o dia, numa cidadezinha do interior mas com carnaval de rua. Ele não sabe se se manda de uma vez para o Rio de Janeiro, não sabe se desfila, se fica por São Paulo, na Vila Madalena, se desce para o centrão, não sabe. Não sabe se faz uma viagem para a Bahia, para Olinda, para Recife, se corre atrás do trio. Enquanto decide, o micaretômano cantarola marchinhas antigas, ♪♫ Hey, você aí, me dá um dinheiro aí, me dá um dinheiro aí ♪♫ e busca pelos hits do verão, pela música que estiverem apostando como “o refrão do próximo Carnaval”. Oras, o micaretômano não pode ficar de fora!


Não, o micaretômano não existe, é apenas uma tentativa de chamar a atenção. Escolhi o Carnaval porque é uma festa, poderia ter sido qualquer outra. Caricaturizo uma personagem e falo do clima de uma festa como Carnaval porque há, na linguagem dessa festa, algo que de modo algum é engraçado, que não é piada, e que precisa ser discutido. Festa que é encarada como o fim de uma guerra, a guerra do cotidiano, das relações formais, obrigatórias, excessivamente cerimoniosas, por vezes apenas de aparências, ou indesejáveis. Festa então para inverter os papéis sociais. Porém, uma festa para a qual eu pergunto se não aprofunda os mesmos papéis sociais quando se trata dos afetos.


Porque os acontecimentos são excessivamente normais quando estamos falando sobre isso. E normal aqui está dilatado em seus sentidos, já que, neste âmbito, vão dos olhares aos atos de extrema violência para consumação do intercurso sexual. É machismo, é cultura do estupro: é normal porque vai do banal às bordas do inimaginável. É normal porque enche as páginas dos jornais cotidianamente há décadas, é histórico. No entanto, infelizmente, me pego pensando se não presto atenção nisso apenas no calor da indignação frente às notícias que, por vezes, nos comunicam o extremo como loucura. Não que não sejam frutos da insanidade. Mas chamo a atenção aqui, por outro lado, para uma loucura que se repete consistente e diariamente mundo afora. Não são casos, são estatísticas. Quantos são os casos de violência contra mulher, no Brasil, diariamente? É aí que o normal e o naturalizado se misturam, e o que é estarrecedor transforma-se em indiferente: e isso sim é loucura.


Se lembro o extremo da violência contra a mulher, porém, é, mais uma vez, para falar daquilo que aparentemente parece banal, e que me parece ao meu, ao nosso alcance. É Carnaval, é só uma festa. Não, não é. E, ironicamente, levo no título deste texto, o obcecado por micaretas, a personagem em questão, the kissing sailor. Porque não consigo falar desses atos extremos, e nas Ciências Sociais, na Psicologia Social, nas Políticas Públicas, enfim, nas Humanidades e fora dela, há gente mais capacitada falando sobre isso. Minha reflexão pega a borda da colcha que recobre a expressão cultura do estupro, e como estudante de antropologia, me pergunto pelas práticas triviais, elementares, que se estendem tanto, culturalmente, pra também se apresentarem nas estatísticas de violência brutal contra mulher. Tomo então o beijo do marinheiro, algo que eu só consigo enxergar nos dias de hoje durante o Carnaval, e, como uma figura bastante estereotipada que caminha por aí, o micaretômano, ele é somente uma maneira que encontrei pra dizer que a comparação entre os tempos não é descabida.


Seria quase um exercício anacrônico, já que, do ponto de vista atual, interrogo uma imagem de 1945 para que ela possa nos dizer não só sobre os E.U.A. que assistia ao fim da II Guerra Mundial, mas, sobretudo, sobre as relações sociais de gênero do nosso mundo contemporâneo. É inegável, claro, que houve grandes transformações nesses universos, durante o transcorrer desses anos. A pergunta que fica, no entanto, é se os princípios que organizavam aquelas relações sociais mudaram tanto assim em relação aos dias de hoje. Minha resposta é não.


Pois é pra você que escrevo, amigão, como quem escreve para um amigo mesmo. Por mais que amigão soe conversa de gente mais velha em relação aos mais jovens, não, amigo, você pode ser mais velho do que eu, ou mais novo, não importa. Além disso, você também pode ser minha amiga, mulheres também são machistas. Você pode ser hétero, você pode ser gay, gays também podem ser misóginos. Você pode ser lésbica, e lésbicas igualmente assumem comportamentos machistas. Você pode ser assexuado: você está vivo por aí mantendo as relações sociais que nos possibilitam acessar à internet, abrir este texto on line, parar e ler. Não se está fora do mundo social, não se está fora do machismo, assim como não se está fora da política, do racismo. Enfim, digo isso para que não tome como pessoal, cara. Enquanto escrevo, há um espelho atrás do meu computador, é evidente que eu também estou falando sobre mim, é impossível que não estivesse, estou falando para mim. Estou aqui pensando minha vida afetiva, aquela garota que primeiro beijei ainda adolescente, ela sorrindo me questionando se eu ia protocolar em cartório, em três vias, o pedido de beijo que eu havia lhe feito um segundo antes. Revivo o desacerto daquela vez em que uma garota apontou pra mim saindo do restaurante entre uns amigos, e só pra mim confiou baixinho, “vou dormir na sua casa, na sua cama”. Repenso cada vez que confundi uma amizade tão bonita como algo mais, e errei, e insisti, e errei, e tudo se perdeu. Volto aos encontros tão felizes que tive, mas que por razões que eu nunca soube, não conseguimos apenas manter contato, senão como amigos, como colegas que gostam de um mesmo diretor de cinema. Talvez tenha sido eu, fundamentalmente eu. Cada olhar, mesmo que desinteressado, de alguém que vive no mundo da Lua. Cada festa, cada dança, cada porre - por que essa associação? Cada beijo, cada transa, cada toque na mão, no braço, nos ombros, mesmo quando não queria nada além de demonstrar alguma cumplicidade. Enfim, cada pequeno gesto que fiz ao longo desses anos de vida afetiva, o que eles puderam representar? Mas e você, cara, em que pé anda sua reflexão sobre seus afetos? [1].






Era 14 de agosto de 1945 e chegava o anúncio de rendimento do Japão, a Segunda Guerra Mundial acabara. Talvez um dos conflitos mais difundidos pela comunicação, e destrutivo em termos históricos, já registrados, dezenas de milhões de pessoas haviam morrido. Pessoas e nações pelo mundo todo se sensibilizaram de alguma forma pelo horror vivido. Diante daqueles anos, o fim da guerra desencadeou uma excitação não antes vista: paradas espontâneas, pessoas cantando, dançando nas ruas e abraços e beijos desinibidos, incluindo por estranhos totais. Era como se o mundo pudesse respirar novamente. Aquele 14 de agosto ficou conhecido como "o dia mais feliz da história dos EUA". [2]


Foi neste dia, nesse contexto que um marinheiro viu uma enfermeira de branco, caminhou até ela e, sem dizer oi, agarrou-a, inclinou-a para trás e a beijou. A enfermeira não conhecia o marinheiro, ela não havia o convidado a qualquer abordagem. Nada disso, aparentemente, importou, naquele momento, e durante todas estas décadas. O homem da Marinha a beijou de qualquer jeito, segurou-a por alguns segundos e, antes de soltá-la, muitas pessoas cercaram o casal. Naquela multidão alguém tinha uma câmera, era Alfred Eisenstaedt, da revista Life. As fotos correram o mundo, durante décadas se falou quem seria aquele casal. Durante décadas se investigou a identidade, quem eram, o que fizeram, qual foi o destino daquele instante capturado. O marinheiro era o pai do micaretômano.


O casal da foto era Greta Zimmer Friedman e George Mendonsa. Depois do beijo, se separaram, só foram se reencontrar em 2012, após intensa pesquisa para confirmação, para celebração daquela imagem, daquela data. Greta diz, assegura que não queria o beijo, que foi surpreendida. A sequência das fotos intui, de fato, pela posição dos braços, ela não parece entregue, à vontade, desejante, ela não parece querer estar ali. É um gesto pequeno, um beijo, alguns instantes, algo sem importância para a vida de ambos, Mendonsa seguiu sua vida, Friedman também. Mas por que celebrar um gesto pequeno, sua dúvida, sua incerteza, seu aparente e confirmado contragosto, como vitória, como triunfo, como alegria, como carinho? Greta disse que não esperava, que não queria, mas também não assume completamente uma posição de vítima, apesar de sua imagem encenar a desigualdade, ali, quase física, e tão histórica, a desigualdade de gênero: as mulheres, no nosso mundo, devem se submeter ao desejo dos homens [3]. Ironicamente, só consigo imaginar que o horror de um Guerra, que nada mais é do que um arranjo coletivo voltado ao aniquilamento, à destruição, à imposição da força, só poderia mesmo festejar, com seu final, um pequeno gesto, ainda que de alegria, também de violência. Somente desse modo consigo compreender o significado da expressão “cultura da violência”: como a palavra cultura, tão próxima de criatividade, pode estar próxima de uma ação violenta; compreender ainda a extensão e a profundidade das relações que a expressão composta abarca: um gesto de afeto, a desigualdade de gênero carregada, no caso da icônica foto, em meio ao fim de uma guerra.


Sinto que é este o poder das fotos, se nos ensinam um novo código, uma época, se ilustram, representam, as fotos também modificam e ampliam nossas ideias sobre o que olhar, sobre o que temos o direito de observar e, ao mesmo tempo, sobre o que ocultam, sobre o que podem revelar. São uma gramática, uma ética do olhar. A câmera é continuidade da consciência, e uma fotografia faz um movimento de apropriar-se daquilo que é capturado. Um fotografia comunica uma determinada relação com o mundo, semelhante ao conhecimento, ao poder. Ora, as imagens mobilizam a consciência por estarem ligadas a determinada situação histórica, como uma Guerra. Mas os atributos, os sentidos das fotos podem a ser engolidos pelo sentimento dessa época, pelos acontecimentos específicos de uma realidade histórica. E a distância estética parece inserir-se, então, na própria experiência de olhar as fotos, não apenas de forma imediata, instantânea, porém, com o passar do tempo. Já que, se uma única foto somente não é capaz de compreender uma situação, ela pode sugerir os caminhos. [4]


Caminhos ainda para entender as relações que estabelecemos com as pessoas ao nosso redor, seja cotidianamente, seja numa festa, seja no Carnaval. Conflitos diários, disputas pessoais, assistimos a toda hora, incessantemente também, ano após ano, novas, repaginadas guerras, são criados novos inimigos, guerras pelo mundo a todo instante. O marinheiro ou o micaretômano seguramente estão, estarão por aí. É com eles, com personagens como essas que se pode encarar as disputas que elegem um presidente, que reverberam em atos de extrema violência, ou que simplesmente alimentam constrangimentos, pequenas submissões, mas nem por isso questões menores, são do dia a dia. Se não há estratégia ou tática pronta, definida, se não se sabe a melhor forma de encará-los, de transformar essas relações, resta manter-se diante disso, questionando imagens, gestos, celebrações, seguir tematizando, falando, repetindo, repetindo, quem sabe, até que fique diferente [5].



Notas.


[1] Livremente inspirado em Machista em Recuperação, de Caio Moretto.

[2] The kissing sailor: the mystery behind the photo that ended World War II. Lawrence Verria and George Galdorisi.

[3] ver item "As relações perigosas e o pilar da sociedade", do artigo "Bolero de machão só se canta na prisão", de Mariza Correa.

[4] Sobre fotografia – ensaios. Susan Sontag.

[5] Uma didática da invenção. Manoel de Barros.

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