VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

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Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

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segunda-feira, 4 de maio de 2015

Falha moral

. . Por Unknown, com 0 comentários





Julgo livros pela capa. Entrei na livraria do shopping e me deparei com Fidel Castro fumando um charuto, pensei: é um livro feito pra mim! Julgo-me um guerrilheiro, um estadista, acredito-me capaz de discursos intermináveis. O livro estava entre os mais vendidos: desconfiei, sou para poucos. Peguei-o, folheei-o, vi o sumário, li a orelha, dizia que era uma bomba contra a esquerda, desfazendo mitos da esquerda, mostrando a falácia - usava palavras rebuscadas - moral, a hipocrisia dos costumes da esquerda brasileira. Tiro conclusões precipitadas, também. A questão do livro era mostrar que enquanto as pessoas se dizem de esquerda, essas mesmas pessoas, por exemplo, vestem-se de Lacoste. Quer dizer, desde muito, a esquerda tem gostos de burguesia. Vesti a carapuça e, como bom católico, confesso-me.

Pouca gente sabe, felizmente, no meu meio, nos meus círculos sociais versados em progressismo e descolação, mas tenho um defeito de caráter imperdoável: gosto, ou melhor, sou aficionado por tênis. Não, eu não tenho uma coleção de New Balance anos 80', outra de All Star, tampouco tenho um arco íris de cadarços, por favor, para cada modelito de pisante que uso. Sou obcecado pelo esporte da bolinha e da raquete, das quadras de saibro. Levo horas vendo uma partida de cinco sets, perco finais de semana acompanhando as últimas partidas de torneios, viro noites apenas para acompanhar duelos entre grandes jogadores e, infelizmente, só por hoje, ainda não voltei a jogar.

Sim, eu sei jogar tênis. Sei jogar de verdade, não é aquela coisa de apenas brincar no fim de semana e ir lá numa quadra vazia num domingo qualquer com o sobrinho da vizinha e se sujar de terra batida no clube de infância. Dá licença: eu tenho estilo, tá, meu jogo é clássico, meu backhand é de uma mão só, gosto de saque e voleio, não sou empurrador de bola não, tá. Só que entre a pose e a prática, ai ai, lá se vão dez anos sem jogar com regularidade.


- Playboy: esporte de playboy, Hugo! - já posso imaginar os comentários que receberei, os unfriend que estou ganhando a partir de agora.


Dou unfriend, ora, por muito menos. Foi meu pai quem me ensinou a jogar, eu tinha uns 13 anos. Apenas me lembro que entre os 4, 5 anos, nossos finais de semana eram em quadras de tênis, meus primos e eu estávamos sempre ao redor de uma quadra. É só ver os álbuns de família. Papai às vezes jogava esses torneios de clubes pela cidade. Daí veio a chata da minha irmã, que resolveu nascer e, pra variar, estragou o rolê. Senhora minha mãe já havia parado de jogar, papai tomou a mesma decisão. Foi uma opção deles, queriam "aproveitar os filhos". Até hoje eu acho isso uma bobagem, afinal, os filhos já foram embora, depois desses anos todos, e eles não voltaram a jogar. Tornaram-se dependentes das crias.

Já na adolescência, eu não aguentava mais dizerem pra mim que meu pai jogava muito bem tênis. Não aguentava mais ele mesmo se gabando - ele é bom nisso, gaba-se de tudo, impressionante, nem se atreva a falar de dança com ele, o maior pé de valsa das gafieiras - do saque e voleio dele que, diziam, andava em extinção no circuito profissional.

Guga já havia aparecido e se consolidado com um dos melhores jogadores do mundo à época, então aproveitei o afã e pedi ao garboso do meu pai: me ensina esse trem aí. Ele debochou - ele também é bom nisso -, desempoeirou as raquetes e fomos pra quadra.

Mas meu pai, dessa vez, tinha razão, levei meses para me sentir à vontade em uma quadra de tênis. O tempo de saque, o posicionamento para devolver bem, o jogo de pernas e pés para o backhand, como executar bem um slace, quando tentar um drop shot, a movimentação do braço no forehand, enfim, todo um universo novo de minúcias. Sem contar o desenvolvimento da atenção, da observação dos movimentos de seu adversário, seus golpes, seu posicionamento, suas jogadas. Reaprendi a jogar xadrez jogando tênis. Tinha que estar preparado fisicamente pra correr atrás de todas as bolas, treinado e concentrado para acertar e levar a bolinha onde eu queria, e ainda planejar, executar e estar pronto e ligeiro para replanejar constantemente, a cada batida, as jogadas. Tênis é um esporte enlouquecedor.

Óbvio, nunca consegui executar nada disso a contento, do contrário, não estaria aqui hoje e Rafael Nadal teria pelo menos metade dos títulos que tem em Roland-Garros. Mentira, mesmo porque a segunda bola que Nadal levantasse com spin no meu backhand, fácil, irritado eu jogaria bolinha e raquete nele. E porque pouca gente sabe, outra vez, mas agora, infelizmente, sobre a minha pessoa, sobre meu caráter... Quando Nadal apareceu no circuito, o suíço Roger Federer já estava estabelecido, e com este nascia também outra das minhas birras gratuitas: alimento raiva de listas, de coisas mais mais, de pessoas consideradas as melhores de, daqueles maiores do mundo, melhores da história. Tenho faniquito de hipérboles, de orações e frases excessivamente adverbiadas ou adjetivadas. Entendo-me como um sujeito de clareza e objetividade machadianas, ainda que dado a floreios roseanos. Mas sou muito humilde, claro.

Acompanhando a carreira de Gustavo Kuerten, talvez em 1999, 2000, me lembro de ouvir um comentário em transmissão de jogo. Rui Viotti dizia ter visto, em jogo pouco expressivo numa competição, numa quadra pequena, um jovem que batia na bola de um jeito diferente, de um jeito especial. O narrador ficara impressionado e torcia para que não estivesse enganado, que todos pudéssemos ver o suíço a que se referia. Rui Viotti não estava errado, Roger Federer se transformou em ... Roger Federer. Alguns anos depois o suíço se tornou o tenista número 1 do mundo e largamente considerado... o melhor da história.

O melhor tenista da história, grande campeão de tudo, e maior freguês de Rafael Nadal. O canhoto espanhol, que se tornaria, alguns anos depois, "o rei do saibro", despertou em mim outra agonia insuperável ao assistir aos seus jogos. É o sujeito mais cheio de manias de todos os tempos, muy loco repetindo uma porção de gestos dentro de quadra. Maluquice, pra mim, só explicada por uma capacidade infinita de concentração e obediência tática, além de disciplina e disposição física absurdas.

Não me lembro de nada parecido antes de Federer e Nadal - talvez Agassi e Sampras, vão dizer, muitas outras rivalidades -, mas desde que o suíço tomou conta do circuito, tendo logo em seguida aparecido o espanhol, seu grande rival e algoz, e ambos protagonizando uma série de finais e disputas, a tal expressão, "o melhor da História", "de todos os tempos", "o maior", etc., pra mim, como se fosse Dionísio vs Apolo, é um transtorno. De um lado, ficam exaltando a aplicação física e tática de Nadal, com sua habitual força, sua precisão, devolvendo todas as bolas, contra atacando magistralmente. De outro, endeusam a plasticidade de Federer, os pormenores na realização de seus golpes, a raridade de seu jogo, sua versatilidade, a combinação, a variação de seus golpes e posicionamentos. É enfadonho. Atualmente, Novak Djokovic, que neste momento é o tenista número 1 do ranking, passa por algo parecido, as comparações, mesmo que (ainda?) não se fale "da História", ou mesmo que ele apresente uma sequência impressionante de recordes acumulados.

Acúmulos, recordes, vencedores, os maiores, num esporte predominantemente individual, quem sabe o tênis não seja perfeito para a tal cultura do empreendedorismo. Papai deve ter ido jogar tênis por isso, na certa, desejo de ascensão social. Trinta e quatro anos com a mesma CG 125 azulzinha e, em compensação, voleava que era uma beleza. Mas ele mesmo reconhece a chatice que era quando ia jogar e socializar no ambiente do tênis: ah, mecânico, você?! Diziam, surpresos, desconcertados. E a gente mesmo, outro dia, comentava enquanto assistíamos ao último torneio: Rafa e Nole não andam, desfilam; Roger, ao caminhar, sutilmente joga os pés para fora com seu jeitinho, é como se esnobasse todos. Tênis é esporte de playboy.
  
Só que a gente não culpa ninguém, não são esses caras que fizeram do tênis um esporte, em sua maioria, praticado por pessoas ricas. Não é culpa das pessoas ricas, não é culpa do governo, não é culpa dos pobres. Mania que essa gente tem de falar em culpa. A culpa é sempre de alguém, de algo, não importa, a culpa sempre está ali, lá, aqui. A culpa, ah, seus cristãos, a culpa. A culpa é da esquerda. A culpa é da direita. A culpa é da burguesia, a culpa é da hipocrisia. A culpa. A culpa é do Fidel. Avemaria, a Culpa é da história, ué, maldita, a culpa é das relações sociais, benditas. Estar no mundo, habitar um tempo e um espaço, nomeando-os, reconhecendo-os, enfrentando-os, em seus absurdos, paradoxos, pra alguns, é difícil. É duro, só eu sei o que eu passo, mas também vem do tênis meu costume de usar meias altas - meias pretas, aliás -, na altura da canela. É falha de caráter pra quem denuncia a hipocrisia dos esquerdistas que vestem Lacoste. Vamos discutir, então, teoria social e política, que tal?



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