Muitas coisas me irritam, no mundo, mas nem uma delas é capaz de
despertar em mim a desmedida raiva como a gentileza. Coisas belas me
irritam, coisas feias, também, ainda que nem tanto, mas coisas legais me
deixam com raiva. Apenas as coisas chatas me encantam, adoro-as sem
razão. Por exemplo, pôr do sol: irritação. Fotos de gatinhos: ira. Bom
dia de estranhos pela rua: ódio. Wes Anderson: amo.
O zelador do meu prédio é um que, dia desses, vou dar um soco só pra ter certeza se ele é mesmo de carne e osso. Pra mim, é um tipo profundamente odiável. Ninguém consegue ignorá-lo, é tamanha gentileza em um ser que não me resta outra alternativa a não ser a raiva calculada. Comecei a desconfiar dele assim que fui visitar minha então futura residência. Seu Francisco, como se chama o zelador, me recebeu me olhando nos olhos, entre a seriedade e a serenidade: só isso aí já me deixou confuso.
Ao me cumprimentar, Seu Francisco perguntou do trajeto que eu fizera até ali, comentou do tempo – coisas absolutamente banais, que qualquer imbecil faria –, mas ele fez tudo isso no mesmo tom de voz, sem sorrir: ele parecia insuportavelmente sincero. Seu Francisco não parecia um vendedor de creme dental, pronto para te vender um importado dentifrício sabor aspargos – aaaarrrrgggghhhhh –, tampouco um corretor de imóveis, ligeiro para te alugar um apê de cozinha com vazamento na pia, de goteira no teto do quarto e sala de parede mofada, tudo isso como se você estivesse de frente pro mar, no Leblon, em vez de ter coladinho a você o sinfônico elevado Costa e Silva.
Intrigado com o procedimento de seu Francisco, fiz algum comentário idiota - não tomo jeito - sobre o piso da cozinha, que parece causar alucinação. Com a mesma simplicidade, seu Francisco quase deixou a compostura britânica e esboçou, apenas esboçou um sorriso. Não foi um sorriso largo, ele não perdeu a elegância dos gestos, manteve o ar equilibrado na face, mesmo porque faço piadas totalmente sem graça. Ele não fez nada além de outra gentileza, dessas interioranas que não estão exatamente desconfiadas, mas são capazes de fiar conversas por horas. Naquele momento, minha associação pronta ao assistir ao proceder de seu Francisco pela primeira vez foi com o personagem Monsieur Gustave, em O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.
Imaginei seu Francisco como aquele elegante senhor de palavras diretas, precisas, retido nos gestos e com certo charme ao caminhar. Pensei seu Francisco fazendo orações ao nascer do sol, tomando seu regrado café da manhã num compartimento pequenino, modesto do prédio. Tentando entendê-lo, vi-o ainda lendo poemas clássicos, recitando de memória versos garbosos e, sim, acreditava-o obcecado por um L'Air de Panache. No entanto, faltava, no meu olhar, encontrar o galanteio de M. Gustave, aquele romantismo desajustado já de finais do século XIX eu não via em seu Francisco.
De fato, me enganei – sou muito bom nisso – e seu Francisco está mesmo distante de M. Gustave. Logo que me mudei, percebi o erro, seu Francisco vai às missas de domingo na igreja do quarteirão de trás. M. Gustave, nossa, eu não consigo imaginar indo à missa. Foi assim que Zero Mustafa, um dia lobby boy no mesmo Hotel Budapeste, tomou força e me parece, por fim, a imagem do homem simples que é seu Francisco.
Tal como o lobby boy Zero Mustafa era praticamente invisível ao funcionamento suiço do grande hotel, seu Francisco passa quase despercebido pela rotina do prédio. A conduta dele como zelador, entretanto, tem efeitos longínquos, atinge todo o quarteirão. As chuvas do final do verão derrubaram uma das árvores na esquina. Saindo para a natação, encontrei seu Francisco no elevador de facão em punho. Fui logo fazendo um escândalo, não me contive: o que é isso, seu Francisco?!; o que o senhor vai fazer com isso?!; pelo amor de Deus, seu Francisco, não faz isso!! Seu Francisco se assustou, eu comecei a rir e ele entendeu, me contando que ia recolher a árvore caída. Fiquei indignado, a árvore era enorme e ele só tinha um facão que, perto daquela árvore, era um canivetinho. Ofereci ajuda, ele negou veementemente.
Ah, mas além de ir à missa de domingo, aos sábados, de folga, seu Francisco também passeia como um popular, um desconhecido, um anônimo na multidão. Flagrei-o faz dois sábados subindo a minha rua, completamente transformado. Com um boné da nike, um bermudão xadrez e uma camiseta justa, seu Francisco – talvez naquele momento ele só atendesse por Chicão – acompanhava duas meninas. Não tive dúvidas no penúltimo domingo, quando as mesmas garotas o acompanhavam na saída da missa do domingo de ramos. Seu Francisco misturava proteção, alegria mal contida, orgulho e corujice: não posso afirmar de maneira convicta, mas tenho pra mim que meu zelador, aos finais de semana, disfarça-se de pai.
Aos domingos, ainda, especialmente pela manhã, seu Francisco me confessava outro dia, assim como a maioria das pessoas que não são pilotos de Fórmula 1, Roger Federer, ou Paolo Guerrero, sente preguiça. Eu lhe perguntava da história de um incêndio que ouvi uma manhã dessas e ele dizia que, sim, era verdade o fogo no prédio ao lado. Mas ele mesmo não levantara, não descera pra ver de onde vinham os gritos de corre, chama a ambulância. Era domingo, insisto. A zeladora do prédio vizinho tinha enlouquecido, colocado fogo em seu apartamento e transeuntes faziam uma gritaria lá fora: seu Francisco e eu, pelo que pudemos averiguar, estatisticamente, preferimos um incêndio no prédio a deixar nossas respectivas camas nas manhãs de domingo. Um lobby boy talvez não tivesse tamanha preguiça.
De todo modo, pensei que não é má ideia um zelador colocar fogo no dormitório. Não conheço o quarto da enlouquecida zeladora vizinha, porém, enquanto procurava uma chave de fenda para montar o armário da cozinha de minha residência, busquei por seu Francisco e... sem entrar no quarto que ele vive, naquilo que é um pedaço de escada acima do último andar, entre o vão que dá arquitetonicamente a distribuição dos apartamentos pelo nosso prédio, entendi por que são as meninas filhas que vem visitar o pai e eles estão sempre pelas ruas: eles não cabem naquela caixa de sapato. Tem mais é que botar fogo no prédio mesmo.
Humpf, mais fácil eu vencer o próximo Roland-Garros que seu Francisco ter uma atitude extremada. Até os fósforos devem se sentir impressionados, recusando sua própria natureza diante da candura do zelador do meu prédio. Outro dia ele apareceu com uma mesa para a minha residência, disse que estava sobrando, não tinha onde colocar e estava se desfazendo dela, perguntou se eu não queria e já foi trazendo, colocando na sala. Quando dei por mim, estava assistindo à novela das oito com a TV sobre a mesa que era de seu Francisco. Como eu não acredito em presentes, prefiro dizer que ele se desfez mesmo daquilo. É meu cálculo de raiva, senão qualquer dia sou eu quem toca fogo no prédio diante de tanta gentileza vindo de quem não deveria, nesse mundo, nem ao menos um pouquinho, ser assim.
O zelador do meu prédio é um que, dia desses, vou dar um soco só pra ter certeza se ele é mesmo de carne e osso. Pra mim, é um tipo profundamente odiável. Ninguém consegue ignorá-lo, é tamanha gentileza em um ser que não me resta outra alternativa a não ser a raiva calculada. Comecei a desconfiar dele assim que fui visitar minha então futura residência. Seu Francisco, como se chama o zelador, me recebeu me olhando nos olhos, entre a seriedade e a serenidade: só isso aí já me deixou confuso.
Ao me cumprimentar, Seu Francisco perguntou do trajeto que eu fizera até ali, comentou do tempo – coisas absolutamente banais, que qualquer imbecil faria –, mas ele fez tudo isso no mesmo tom de voz, sem sorrir: ele parecia insuportavelmente sincero. Seu Francisco não parecia um vendedor de creme dental, pronto para te vender um importado dentifrício sabor aspargos – aaaarrrrgggghhhhh –, tampouco um corretor de imóveis, ligeiro para te alugar um apê de cozinha com vazamento na pia, de goteira no teto do quarto e sala de parede mofada, tudo isso como se você estivesse de frente pro mar, no Leblon, em vez de ter coladinho a você o sinfônico elevado Costa e Silva.
Intrigado com o procedimento de seu Francisco, fiz algum comentário idiota - não tomo jeito - sobre o piso da cozinha, que parece causar alucinação. Com a mesma simplicidade, seu Francisco quase deixou a compostura britânica e esboçou, apenas esboçou um sorriso. Não foi um sorriso largo, ele não perdeu a elegância dos gestos, manteve o ar equilibrado na face, mesmo porque faço piadas totalmente sem graça. Ele não fez nada além de outra gentileza, dessas interioranas que não estão exatamente desconfiadas, mas são capazes de fiar conversas por horas. Naquele momento, minha associação pronta ao assistir ao proceder de seu Francisco pela primeira vez foi com o personagem Monsieur Gustave, em O Grande Hotel Budapeste, de Wes Anderson.
Imaginei seu Francisco como aquele elegante senhor de palavras diretas, precisas, retido nos gestos e com certo charme ao caminhar. Pensei seu Francisco fazendo orações ao nascer do sol, tomando seu regrado café da manhã num compartimento pequenino, modesto do prédio. Tentando entendê-lo, vi-o ainda lendo poemas clássicos, recitando de memória versos garbosos e, sim, acreditava-o obcecado por um L'Air de Panache. No entanto, faltava, no meu olhar, encontrar o galanteio de M. Gustave, aquele romantismo desajustado já de finais do século XIX eu não via em seu Francisco.
De fato, me enganei – sou muito bom nisso – e seu Francisco está mesmo distante de M. Gustave. Logo que me mudei, percebi o erro, seu Francisco vai às missas de domingo na igreja do quarteirão de trás. M. Gustave, nossa, eu não consigo imaginar indo à missa. Foi assim que Zero Mustafa, um dia lobby boy no mesmo Hotel Budapeste, tomou força e me parece, por fim, a imagem do homem simples que é seu Francisco.
Tal como o lobby boy Zero Mustafa era praticamente invisível ao funcionamento suiço do grande hotel, seu Francisco passa quase despercebido pela rotina do prédio. A conduta dele como zelador, entretanto, tem efeitos longínquos, atinge todo o quarteirão. As chuvas do final do verão derrubaram uma das árvores na esquina. Saindo para a natação, encontrei seu Francisco no elevador de facão em punho. Fui logo fazendo um escândalo, não me contive: o que é isso, seu Francisco?!; o que o senhor vai fazer com isso?!; pelo amor de Deus, seu Francisco, não faz isso!! Seu Francisco se assustou, eu comecei a rir e ele entendeu, me contando que ia recolher a árvore caída. Fiquei indignado, a árvore era enorme e ele só tinha um facão que, perto daquela árvore, era um canivetinho. Ofereci ajuda, ele negou veementemente.
Ah, mas além de ir à missa de domingo, aos sábados, de folga, seu Francisco também passeia como um popular, um desconhecido, um anônimo na multidão. Flagrei-o faz dois sábados subindo a minha rua, completamente transformado. Com um boné da nike, um bermudão xadrez e uma camiseta justa, seu Francisco – talvez naquele momento ele só atendesse por Chicão – acompanhava duas meninas. Não tive dúvidas no penúltimo domingo, quando as mesmas garotas o acompanhavam na saída da missa do domingo de ramos. Seu Francisco misturava proteção, alegria mal contida, orgulho e corujice: não posso afirmar de maneira convicta, mas tenho pra mim que meu zelador, aos finais de semana, disfarça-se de pai.
Aos domingos, ainda, especialmente pela manhã, seu Francisco me confessava outro dia, assim como a maioria das pessoas que não são pilotos de Fórmula 1, Roger Federer, ou Paolo Guerrero, sente preguiça. Eu lhe perguntava da história de um incêndio que ouvi uma manhã dessas e ele dizia que, sim, era verdade o fogo no prédio ao lado. Mas ele mesmo não levantara, não descera pra ver de onde vinham os gritos de corre, chama a ambulância. Era domingo, insisto. A zeladora do prédio vizinho tinha enlouquecido, colocado fogo em seu apartamento e transeuntes faziam uma gritaria lá fora: seu Francisco e eu, pelo que pudemos averiguar, estatisticamente, preferimos um incêndio no prédio a deixar nossas respectivas camas nas manhãs de domingo. Um lobby boy talvez não tivesse tamanha preguiça.
De todo modo, pensei que não é má ideia um zelador colocar fogo no dormitório. Não conheço o quarto da enlouquecida zeladora vizinha, porém, enquanto procurava uma chave de fenda para montar o armário da cozinha de minha residência, busquei por seu Francisco e... sem entrar no quarto que ele vive, naquilo que é um pedaço de escada acima do último andar, entre o vão que dá arquitetonicamente a distribuição dos apartamentos pelo nosso prédio, entendi por que são as meninas filhas que vem visitar o pai e eles estão sempre pelas ruas: eles não cabem naquela caixa de sapato. Tem mais é que botar fogo no prédio mesmo.
Humpf, mais fácil eu vencer o próximo Roland-Garros que seu Francisco ter uma atitude extremada. Até os fósforos devem se sentir impressionados, recusando sua própria natureza diante da candura do zelador do meu prédio. Outro dia ele apareceu com uma mesa para a minha residência, disse que estava sobrando, não tinha onde colocar e estava se desfazendo dela, perguntou se eu não queria e já foi trazendo, colocando na sala. Quando dei por mim, estava assistindo à novela das oito com a TV sobre a mesa que era de seu Francisco. Como eu não acredito em presentes, prefiro dizer que ele se desfez mesmo daquilo. É meu cálculo de raiva, senão qualquer dia sou eu quem toca fogo no prédio diante de tanta gentileza vindo de quem não deveria, nesse mundo, nem ao menos um pouquinho, ser assim.