VÍDEO: MURILO CAMPANHA CONTA ITATINGA

O psicanalista Murilo Campanha fala sobre Itatinga, um dos maiores bairros de prostituição da América Latina, onde ele tem seu consultório.

O nadador

Uma crônica de Hugo Ciavatta.

Ainda que as bolachas falassem

Crônica de Fábio Accardo sobre infância e imaginação

Ousemos tocar estrelas

Uma reflexão de Thiago Aoki.

Entre o amarelo e o vermelho

Uma crônica de Hugo Ciavatta

O homem cordial vinhedense

A classe média vai ao barbeiro. Uma crônica de Caio Moretto.

sexta-feira, 6 de março de 2015

[sem título]

. . Por Unknown, com 0 comentários









Aconteceu mais ou menos comigo ano passado. Mais pra menos que pra mais. Sai de casa no fim da tarde e vestia um tênis, um shortinho e uma camiseta apertada, levava o cabelo em coque e a barba sem raspar havia algumas semanas. Sou desses. Eu ia correr, apenas correr na avenida, mas no quarteirão de baixo eu ainda caminhava quando, em sentido oposto ao meu, na mesma calçada, vinha uma moça. Ela vestia um tênis, um shortinho, uma blusinha apertada, levava o cabelo preso mas não tinha barba. Ela era igual a um zilhão de garotas. Cruzamos o passo na frente do estacionamento de um restaurante bem movimentado. Ela tinha fones nos ouvidos, eu, não. Daí ouvi dois fiu fius quase simultâneos, alguma coisa que não entendi bem, mas que se referia à bunda, mais um convite pra ir lá chupar alguma coisa. Parei, me virei pro estacionamento, o que ouvia vinha de um grupo de homens que entrava ali. Eles todos olhavam pra garota, que seguia caminhando. Levei as mãos à cintura, separei uma das pernas e falei alto, rasgando a voz:


- Brigaaadah, genthyyy! Ameeey, vocês são todos uns liindos - enquanto levantava uma das mãos e apontava lentamente pra cada um deles com o pulso quebrado.



Nunca havia recebido olhares como os que recebi nesse instante. Dei a volta por trás do quarteirão e passei o resto da noite em casa. Não passei mais na frente daquele restaurante, tampouco corri no mesmo horario.



Os olhares não são os mesmos, claro, mas as mulheres sentem algo parecido com isso todos os dias, a maior parte da vida.





quinta-feira, 5 de março de 2015

29 F

. . Por Unknown, com 0 comentários




29-F, vinte e nove éfe, repito depois de passar o portão de embarque e guardar o bilhete da passagem, era o meu assento. Coloco o bilhete junto ao passaporte e guardo-o rapidamente. Perco coisas e documentos como quem escova os dentes. Também faço comparações ruins e referências baratas. 29-F: corredor de embarque. Vinte e nove éfe: entro no avião. Bom dia, diz a aeromoça, 29 éfe, eu respondo. Cacete, que poltronas essas as da classe executiva, 29-F, assim eu dormiria fácil. 29 éfe: ê fundão da classe econômica. Se essa porra cair lá de cima, 29-F, morremos todos igualmente, 29 éfe. Fileira C, D, E, F, direita, 24, 25, 26, esquerda, 27, 28, 29. 29-F, janelinha. Isso aí, adoro ver as cidades lá de cima, não consigo distinguir um ponto de ônibus de um edifício empresarial e as pessoas aqui embaixo se dão tanta importância. 29 éfe mais um boné com brilhantes, lantejoulas, aba reta, uma camisa do Chicago Cubs e uma calça xadrez. Me visto muito mal, mas tenho senso de ridículo, não sou eu ali, penso enquanto procuro pelo bilhete. Onde foi que coloquei o passaporte? Ai, não posso ter perdido, faz um instante apresentei isso... penso de novo e a moça da 27-F, no corredor, mira o sujeito do Chicago Cubs sentado naquela que seria a minha poltrona. Sou péssimo para ler emoções, não consigo entender se ela apenas o interroga para saber o que está acontecendo, se o agride com ar de naturalidade demonstrando raiva - imagino que são um casal -, e antes deles dizerem qualquer coisa, digo que tudo bem se aquela for a minha poltrona, posso sentar na fileira de trás, que está toda livre. Enquanto guardo a mochila no bagageiro acima, percebo que a 28-F está me olhando. Com o queixo quase tocando o peito, um sorriso levemente envergonhado, a menina estava me olhando. Digo oi, reproduzindo meu sorriso ensaiado, passo para a fileira de trás e, enquanto sento, confiro se era comigo mesmo, se não havia alguém atrás de mim e eu me intrometia naquele olhar. Não, era pra mim mesmo.


Era pra mim, também, porque a menina virou-se brevemente para a fresta entre as poltronas, em seguida, assim que sentei, a ver onde eu estava, atrás daquele que eu imaginava ser o pai dela, o cara da poltrona que deveria ser a minha. A menina mantinha o mesmo olhar, o mesmo sorriso, o mesmo queixo, e quando tentei reproduzir também o mesmo sorriso ensaiado, ela logo se virou pra frente. Achei que eu pudesse ter assustado a garota. No entanto, ela estava olhando pra mim e não conseguiu parar de repetir isso, pois voltou-se para a fresta entre as poltronas inúmeras vezes, inúmeras vezes com o mesmo olhar, o mesmo sorriso e a mesma posição do queixo antes do avião decolar. Sim, às vezes até eu me canso das minhas próprias repetições. Mas se ela se repetia no movimento, eu alternava o mesmo sorriso ensaiado, um aceno com alguns dedos e apertar dos lábios, um coçar na cabeça, um novo oi, uma sobrancelha, duas sobrancelhas, até que, por fim, o avião decolou.


Fiquei curioso pra ver o que ela assistia no vídeo de sua poltrona, já que por alguns instantes ela se esqueceu de mim. Achei muito rosa o cenário do vídeo clipe que se repetia na tela. É, achei muito ruim, muito ruim, confesso, mas tento salvar um trecho da música: 


~I see the magazines working 
That photoshop
We know that shit ain't real 
C'mon now, make it stop 
If you got beauty beauty just 
Raise 'em up' Cause every inch of you is perfect


O clipe se repetia na tela da poltrona da menina, imaginei assim que isso fosse uma característica dela, mais do que minha, a repetição. Pensei em dizer que o livro que eu lia também era sobre a letra da música. Na verdade, ia dizer que o meu livro era melhor que o vídeo clipe e a letra da canção: 


~Havia nele tiques normalizados – visíveis todos os dias e em qualquer situação. Havia outros tiques conjunturais (…). E havia ainda tiques imprevisíveis – que não estavam, ou não pareciam, associados a nenhum acontecimento específico~


Era a explicação, a definição, bem diante dos meus olhos, para o que acontecia bem diante dos meus olhos: ela apenas tinha tiques. E eu assumia o sarcasmo do autor do livro que eu lia. Não, a repetição do vídeo clipe na sua tela cessou, deu lugar a um filme sobre gelo. Em vez de rosa, tudo então ficou branco no cenário do seu assento. A repetição nela, em relação a mim, do mesmo modo se modificou. O queixo se levantou e o sorriso não era mais tão tímido. Ela mantinha, porém, o mesmo olhar. Virando-se pra mim, duas vezes ela apontou a tela do vídeo, ~for the first time in forever~, contraditoriamente. No seu caso, o diagnóstico talvez fosse uma repetição com pequenas modificações assim que se trocavam as cores.


Ela dormiu, terminei o livro. Também dormi, que alívio, eram 6h de voo. Acordei com a ponta dos dedos dela, entre as poltronas, tocando meu joelho. Ela ainda me olhava do mesmo jeito. Mas não eram tiques, ela não estava mentindo, Hugo. A gente já tá chegando, foi o que ela disse. Como eu fiquei olhando pra mão dela, ela completou, mostrando a outra, que tinha pintado cada uma das unhas de uma cor. Nossa, que legal, eu disse rindo e coçando os olhos. Ela também sorriu. Acho legal mesmo. Enquanto o avião descia, ela me mostrou o presente que ganhara, contou-me da vovó e do vovô que a aguardavam no aeroporto, que ela morava ali mesmo, naquela cidade que tinha uma porção de luzes lá embaixo, como ela disse e víamos pelas janelas. O avião preparava-se para o pouso e ela ainda perguntou se eu gostava de construir bonecos de neve. Eu disse que sim, ela falou que também gostava. Ela não se repetiu mais, quer dizer, apenas continuava me olhando do mesmo jeito.


Já em terra, enquanto eu ligava o celular, não a vi sair, mas no corredor do portão de desembarque, escutei um quase grito se estedendo, ~a gente tá indo atrás de vochê, a gente tá indo atrás de vochê~, entre um riso e outro, seguido também por um ~Daniela... Daniela...~, daquela moça que se sentava na poltrona 27-F, talvez a mãe, que então empurrava o carrinho em que se sentava Daniela. Daniela é o nome dela, pensava e olhava pra trás, de olhos arregalados, procurando pra onde correr, hesitando o passo e indo de um lado pro outro, como se estivesse perdido, em fuga. Era de mentira, mas era verdade, Daniela, eu estava mesmo fugindo. Pensei que talvez devesse ter lhe dito, Daniela, pra que você nunca mais repetisse nada daquele voo, porque é perigoso. Pensei em mandar você mexer com alguém do seu tamanho, cara. Mas, sabe, boa sorte.






* música: Meghan Trainor, All about that bass.
** livro: Matteo Perdeu o Emprego, Gonçalo M. Tavarez.
*** filme: Frozen.

*** foto: Luna, museu Frida Kahlo

    • + Lidos
    • Cardápio
    • Antigos