Eu tenho uma amiga, Luisa Victória, que não gosta de pudim de pão. “Luisa Victória”, que azar, é verdade. Desafiando a mitologia luso brasileira, a família imperial dos Orléans e Bragança, os pais de Luisa Victória lhe deram esse nome na esperança de que a filha se saísse bem na vida. Eles, portanto, é que deem o veredicto sobre a victória no fim das contas, porque esse nome composto pra mim é uma catástrofe. Para Luisa Victória, no entanto, tragédia é se deparar com um pudim de pão. Ela poderia se chamar Gelatina Sem Sabor, tudo bem, desde que não lhe viessem com um pudim de pão como sobremesa. Só de ouvir falar em pudim de pão ela já se estremece toda, lhe veem arrepios, calafrios. Ela gosta apenas de pudim de leite. Também, pudera, no universo de Luisa Victória, as sobremesas se dividem entre aquelas com ou sem ganache. Luisa Victória não consegue dizer apenas “creme de leite com chocolate”, afinal, é ganache – com acento na pronúncia, claro.
Não compartilho das opiniões de Luisa Victória, o desdém dela pelo pudim de pão, sobretudo, me causa espécie. Na última vez que nos encontramos, num almoço, Luisa Victória, encrenqueira, briguenta, que adora uma confusão, já ensaiava um chilique quando se deparou com um pudim como sobremesa, no restaurante. Ela foi logo assuntando, especulando, “será que é pudim de pão?!; ai, meu deus, não pode ser, tenho horror, odeio pudim de pão!”. Eu, polido, discreto e elegante, confesso, estive prestes a sair de mim – adoro expressões do impossível –, mas me mantive calmo. Na verdade, prezo muitíssimo um pudim de pão, pra mim, isso é mais que uma questão de gosto: é uma questão ecológica, econômica e cultural! Digo mais, é uma questão de família!
Explico. Não é simplesmente pela receita, pelo preparo, em que para um tipo pudim se utiliza apenas leite, leite condensado, ovos e, para outro, tadan, acrescenta-se pão. Não. É uma questão política, ecológica mesmo. Meros comilões que somos, ignorantes do que se passa antes dos alimentos chegarem às nossas mesas, ansiosos apenas pela chegada do pudim ao final da refeição, nem sequer imaginamos quantos são os pãezinhos produzidos diariamente em cada padaria desse mundão véio sem porteira. Duas vezes ao dia, às vezes três, em todas as padarias da cidade, quantos são os pãezinhos produzidos, quantas são as padarias somente aqui na Vila Indepedência?! Eu não imagino, mas não preciso de matemática muito avançada para encontrar a racionalidade do pudim de pão: são incontáveis pães diariamente abandonados, que sobram, amanhecidos, velhos e duros nas prateleiras. A culinária, a confeitaria que reaproveita os alimentos, que lhes dá outros sabores, ora, é um exemplo! O pudim de pão é preparado com esses pães esquecidos, o conhecido pão-velho. Agora, quem joga creme de leite com chocolate em cima das sobremesas e precisa enfatizar que comeu ganache vai então menosprezar um pudim pão?! Ah, não! Diria um entusiasta mais exaltado: salve o pão-velho, viva o pudim de pão!
Não sou tão empolgado, mas defendo os pãezinhos. Além disso, os economista dizem hoje, todos sabem, a década de 1980 foi perdida. Não os contesto, afinal, trata-se de economia, oh. Acontece que quando o assunto é pãozinho, peraí, eu entendo. A década foi perdida, depois veio a abertura econômica, a globalização galopante, porém, as culturas já se conectavam havia muito. O pão francês, o filãozinho da padaria estava submetido às flutuações da inflação, disso ninguém duvida, todos se lembram. O pão francês, que se destaque, pois aquele pão italiano, hoje mais do que lugar comum em nossas cozinhas, naquela época já ganhava espaço em nosso vocabulário. Papai ainda outro dia contava que no meu registro em cartório, lá no Ribeirão Preto, na mesma década, apareceu a dúvida: “Hugo?” “Isso, Hugo, com agá, por favor” “Hugo do quê?” “Ci-a-va-tta, com cê e dois tês” “Ciabatta?! Ah, igual aquele pão?!” “Não, não, não!!” interrompeu papai, às pressas, “em vez do 'be', é 'vê', Ci-a-VA-tta!” “ah, tá, entendi, com dois tês, né...”, finalizou o escrivão, tendo sido desfeito o engano mas não a piada. De todo modo, Hugo Ciavatta comparado ao pão italiano é melhor que Luisa Victória: ah, isso é.
Anos depois, eu era ainda pirralho, a professora na escola perguntou a profissão de nossos pais. Quando eu disse que papai era mecânico de automóveis, Pedrinho, sentado do outro lado da sala, lá no fundo, rebateu prontamente, “mentira, fessora, olha o sobrenome dele, o pai dele é o dono daquela padaria enorme na avenida 13 de maio, 'Pães & Doces Ciabatta'”! A professora não escondeu o triunfo de Pedrinho, ela sorriu de maneira bastante contida, como quem esconde um elefante debaixo do braço, e me questionou. Eu até hoje não sei quem é o dono daquela espelunca, obviamente, mas amigos mais próximos ainda lembram de perguntar como anda a padaria de papai.
Enquanto Luisa Victória especulava o fabrico do pudim no restaurante, durante o almoço, eu remoía calado as razões de tamanho desconforto meu com o desprezo ao pudim de pão. Então encontrei minhas mais tenras memórias. Deve vir daí também o meu carinho pelos pães de queijo. Se eu tivesse nascido em Minas Gerais, estaria tudo esclarecido com a combinação do queijo, mas não. Tsc, permanece o mistério. No fim, o pudim não era de pão, e Luisa Victória, eu e nossos amigos comemos de um pudim de leite, que estava delicioso, por sinal.