“...
convém lembrar que quando cores brilhantes
como o
azul e o amarelo
se mesclam
aos nossos olhos,
apagam um
pouco nossos pensamentos...”
(Virginia
Woolf)
Em maio
passado, almocei com o ex-presidente sul africano Nelson Mandela. Uso
a expressão 'maio passado' como se ela fosse suficiente para me dar
a distância e o autocontrole que só a passagem dos dias poderiam me
trazer. Como se, também, o acontecimento repousasse na memória
tranquilamente e eu o pudesse controlar, transmitindo-o sem
tremer.
No dia daquele almoço com Mandela, Beatriz me acompanhava, como se dizia no passado, dessa vez bem
mais distante, eu a tutelava. Beatriz é filha de um senhorzinho que
conheci também faz muito - nota-se, há saudosismo demais aqui, mas apenas por enquanto.
Seu Mário – por favor, sem piadas infames –, dez anos atrás, já vivia num asilo na cidade em que nasci, quando nos conhecemos. Ele dizia que para lá fora mandado por suas ideias, que não condiziam com o regime político de seu país – ele é estrangeiro –, com a moralidade da época, tampouco com a paciência de amigos e familiares. Era apaixonado o Mário, um desses idiotas completos que jamais se entende, que não dá explicações de nada, saltita de frase em frase como se fizesse poesia e, inutilmente, esperamos dele uma conclusão resolvedora. Graciela, sua esposa, mãe de Beatriz, meses depois de eu ter estabelecido amizade com Mário no asilo onde ele estava, e que eu frequentava, bem, que eu frequentava por esporte, me dizia que preferiram o asilo a qualquer outra instituição que soasse... que não soasse bem. Talvez Mário tivesse razão, era a moralidade da época.
Seu Mário – por favor, sem piadas infames –, dez anos atrás, já vivia num asilo na cidade em que nasci, quando nos conhecemos. Ele dizia que para lá fora mandado por suas ideias, que não condiziam com o regime político de seu país – ele é estrangeiro –, com a moralidade da época, tampouco com a paciência de amigos e familiares. Era apaixonado o Mário, um desses idiotas completos que jamais se entende, que não dá explicações de nada, saltita de frase em frase como se fizesse poesia e, inutilmente, esperamos dele uma conclusão resolvedora. Graciela, sua esposa, mãe de Beatriz, meses depois de eu ter estabelecido amizade com Mário no asilo onde ele estava, e que eu frequentava, bem, que eu frequentava por esporte, me dizia que preferiram o asilo a qualquer outra instituição que soasse... que não soasse bem. Talvez Mário tivesse razão, era a moralidade da época.
O asilo
se chamava Casa Liberdade. Beatriz ali tinha em torno de dois anos e, desde que me mudei da cidade, mantive maior contato com Graciela, que
muito mais me contou sobre Mário. Ela e a filha se mudaram
para um país vizinho - não o identifico, pois há conspiradores, sabe -, onde nasceram todos, e elas vem às vezes passear,
visitar Mário e outros amigos.
Eu ficara
com Beatriz no dia em que almocei com Nelson Mandela. Graciela tinha duas entrevistas de emprego e
guardava expectativa de retornar ao Brasil, já que as condições de
vida por aqui, lhe pareciam, estão melhores. Beatriz mal fala
português, dos nem dez anos de vida que tem, ainda não aprendeu a se sentir envergonhada, não para um segundo sequer de papear,
apontar o mundo ao redor e dizer alguma coisa, alguma coisinha ela
há de dizer. Me diverti com a falta de discrição dela o dia todo, lhe ensinava as palavras em português que ela mais falava em espanhol, palavras de coisas que ela via pela rua, em casa, ou que simplesmente sua imaginação lhe
trazia.
Quando
entramos no restaurante, Beatriz dizia:
- Este
país no es el mío pero me gusta bastante. No sé si me gusta más o
menos que mi país. … Una de las diferencias es que en mi país hay
cabayos y aquí en cambio hay cabaios.
- Não, Beatriz, é 'cavalos' que se diz aqui – eu sorria.
- Este
país es más grande que el mío, sobre todo porque el mío es
chiquitísimo. … En este país viven mi abuelo Rafael .... Y también otros millones. Es muy agradable saber que una
vive en un país con muchos millones. Cuando Graciela me lleva al
Centro, pasan montones de gente por la calle. Es tanta tanta tanta
gente la que pasa que me parece que ya debo conocer a todos los
millones de este país.
- Que
exagero, Beatriz! – eu sorria mais, me lembrando do Mário...
O restaurante em que estávamos fica num edifício diferente, muito grande e alto, e como tudo ao redor, o prédio chamou a atenção de Beatriz:
- El singular se
escribe rascacielos y el plural también se escribe rascacielos.
- Se diz
'arranha-céu' aqui, Beatriz, mas, veja, há singular para a palavra.
- Los rascacielos
son edificios con muchísimos cuartos de baño. Eso tiene la enorme
ventaja de que miles de gentes pueden hacer pichí al mismo tiempo.
- Xixi, Beatriz – e eu gargalhava dessa vez.
- Xixi, Beatriz – e eu gargalhava dessa vez.
Desde Saint-Exupéry, diz-se que marcado um encontro, com data e horário definidos, começamos a vivência-lo e, emaranhados na expectativa de seu acontecimento, somos felizes. Mentira, ou meia verdade. Ainda que eu estivesse certo de encontrar Eddie Vedder naquele dia, ninguém tiraria de mim a euforia, a alegria, a mesquinha felicidade, a confusão completa, as dúvidas que as aulas de história que se passaram na minha cabeça, não mais que de repente, me deram: Beatriz escolhera uma mesa de frente para Nelson Mandela, o Madiba, e a esposa dele. Madiba é a forma carinhosa pela qual Mandela é conhecido. É uma referência ao povo Thembu e ao clã dos Madiba. Quando sentamos, Beatriz e eu, o casal já comia tranquilamente, indiferenciados no salão, e Beatriz seguia:
- Los
rascacielos poseen además otras ventajas. Por ejemplo tienen
ascensores con mareos. Los ascensores con mareos son muy modernos.
Los edificios viejísimos no tienen ascensores o sólo tienen
ascensores sin mareos y la gente que vive o trabaja allí se muere de
vergüenza porque son muy atrasados.
-
Beatriz?! 'Vômito', 'enjoo', elevadores com 'enjoo'?! Que maldade! Vamos, coma! –
era ela quem sorria agora.
Aquele
homem que vivera 27 anos em uma prisão – tal como o pai de
Beatriz –, estava ali diante de mim, mastigando vagarosamente a comida simples de um restaurante popular. Madiba e
sua senhora observavam o movimento ao redor, de todos que pegavam a
comida, procuravam uma mesa e, muito diferente deles, apressadamente
engoliam tudo e se iam mundo afora. Como eles comiam devagar. A sra.
Mandela em algum instante, o único em que Beatriz ficou quieta,
creio, desde que nascera, virou-se para o marido e, de boca cheia,
balbuciou algo. Não entendemos, nem Beatriz nem eu, nada, talvez
fosse uma língua dentre as raras e muitas que eles falam no
interior da África. Ou talvez fosse simplesmente o fato dela estar
falando de boca cheia - cruzes, até Beatriz ficou sem jeito.
Eu queria
dele alguma eloquência, alguma palavra, algum gesto, algo, qualquer
coisa, mas ele mastigava a comida, só. Pois, sim, aquele homem
inspirado por Ernest Henley mantinha um rosto sereno:
“In the
fell clutch of circumstance
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.”
I have not winced nor cried aloud.
Under the bludgeonings of chance
My head is bloody, but unbowed.”
[Na garra cruel da circunstância,/ Eu não recuei nem gritei./ Sob os golpes do acaso/ Minha cabeça está em sangue, mas ereta.]
“Beyond
this place of wrath and tears
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.”
Looms but the Horror of the shade,
And yet the menace of the years
Finds, and shall find, me unafraid.”
[Além
deste oceano de lamúria,/ Somente o Horror das trevas se divisa;/
Porém o tempo, a consumir-se em fúria,/ Não me amedronta, nem me
martiriza.]
Só
poderia ser isso mesmo, um homem que não se importa com a coisa mais
trivial e assustadora que é a passagem do tempo, mastiga
pacientemente o almoço. Eu o imaginava dizer, depois da última
colher de sobremesa:
“I am the master of my fate;
I am the captain of my soul.”
[Eu sou o senhor de meu destino;/ Eu sou o comandante de minha alma.]
Que heresia a minha, é verdade: uma vida inteira dedicada à suas ideias, ao fim do apartheid, e eu com pensamentos grandiloquentes e debochados. Mas Beatriz não me deixava esquecer los rascacielos:
“I am the master of my fate;
I am the captain of my soul.”
[Eu sou o senhor de meu destino;/ Eu sou o comandante de minha alma.]
Que heresia a minha, é verdade: uma vida inteira dedicada à suas ideias, ao fim do apartheid, e eu com pensamentos grandiloquentes e debochados. Mas Beatriz não me deixava esquecer los rascacielos:
- Cuando
hay un apagón en los ascensores de rascacielos cunde el pánico. En
mi clase cuando llega la hora del recreo cunde la alegría. El verbo
cundir es un hermoso verbo.
-
'Espalhar-se', é como se pode dizer aqui, Beatriz, e é bonito mesmo.
- Los
rascacielos altos hacen mucha sombra, pero es una sombra distinta a
la de los árboles. A mí me gusta más la sombra de los árboles,
porque tiene manchitas de sol y además se mueve. En la sombra de los
rascacielos cunden las caras serias y la gente que pide limosna. En
la sombra de los árboles cunden los pastitos y los bichitos de San
Antonio.
-
'Esmola', Beatriz, aqui as
pessoas também pedem esmola na sombra dos prédios... É, tem razão,
eu também prefiro as árvores! – impossível não se encantar com
essa menina.
Depois
que eu terminei de comer, aguardei Beatriz. Entre uma história,
uma reflexão linguística e do uso que as coisas no mundo ao redor
possuíam, ela por fim almoçou quase tudo. Nosso ilustre casal
ainda comia, em silêncio, observando todos. Beatriz, claro, percebeu
que eu os observava, perguntou quem eram e eu disse que não sabia,
oras. Se eu lhe explicasse, provavelmente ela diria ser loucura minha. Mas ela desconfiou e, mesmo assim, emendou uma conversa em seguida.
Rascacielos, rascacielos,
ela repetia como quem decorava a tabuada do sete, denunciando-se como
quem ainda não aprendeu a esconder o leve corar do rosto por uma
surpresa, ou quem não consegue transformar a necessidade de falar
com palavras e mais palavras e mais palavras, incessantemente, em vez
de fazer disso exclamações, exclamações de gestos, de sorriso, de
olhar. Ou exclamações serenas de quem mastiga o almoço com calma,
como Madiba.
*Beatriz está em Primavera con una esquina rota, de Mário Benedetti.